quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Os "bifes" de Little Witch Academia



Muito bem.

Acabei de assistir as duas temporadas de Little Witch Academia no Netflix.

A primeira é legalzinha.

Mas a segunda…

É uma bosta.

E, quando eu lembro dos OVAs que vieram antes da série, eu fico ainda mais irritado.

Que o segundo OVA é infinitamente melhor que a segunda temporada da série.

Sabem por quê?

Por causa dos bifes.

Seguinte: existe a expressão em inglês “high stakes”, que eles usam no sentido de “altos riscos”, e que num contexto narrativo é usada para descrever o quanto está em jogo na história, ou seja, o que vai acontecer caso o personagem principal da história não consiga cumprir seu objetivo.

Como “stakes” é homófono de “steaks”, que significa “bifes” em português, criei o hábito tonto de chamar esse “o que está em jogo na história” de “bifes”.

E Little Witch Academia tem sérios problemas com seus bifes, principalmente na segunda temporada.

Antes de continuar, melhor avisar: spoilers para Little Witch Academia, tanto dos OVAs quanto do animê, e para Kill la Kill.

Muito bem, durante a segunda temporada de LWA, a história gira em torno das sete palavras de Arcturus que a Akko precisa pra despertar a magia suprema. Ela já tinha descoberto umas três durante a primeira temporada, que conta mais o dia-a-dia dela na escola de magia, mas na segunda esse plot se torna o foco da série.

Além disso, vamos aprendendo a relação que essas sete palavras têm com a professora Ursula, que secretamente é a ídola de infância da Akko, a Shiny Chariot, e com a professora Croix, que é a vilã da história toda.

Até aqui, nenhum problema.

A merda acontece quando, de repente, as sete palavras precisam ser usadas para impedir uma guerra nuclear que está começando por causa de futebol.

Sério.

Existe todo um sub-plot totalmente desinteressante e mal-trabalhado em torno de um monte de personagens sem a menor graça que só estão lá para ter algum personagem masculino com alguma importância (já que a escola da Akko é só pra garotas), e perto do final esse fiapo de história se torna a justificativa para ter toda uma pirotecnia nos últimos episódios.

E eu assisti tudo isso sem me importar com porra nenhuma. Na verdade, eu estava mais me irritando com a maneira como a história se forçou para ficar exagerada do que realmente torcendo para as bruxinhas salvarem o mundo.

Nós passamos a série inteira acompanhando os dilemas da Akko com as professoras e as colegas, e o relacionamento entre todas elas é o foco da maior parte dos episódios, desde a primeira temporada. Logo, os bifes mais interessantes são aqueles envolvendo esses relacionamentos. Eles são as picanhas da série, que vão se resolvendo perto do final, quando aprendemos mais sobre a juventude das duas professoras, quando temos o momento que a Ursula finalmente se revela como a Chariot para a Akko, e até mesmo quando a Diana e a Akko ficam amigas.

Logo, todo o investimento emocional que o espectador faz na série se resolve antes do fim. Só que como precisava ter um showzinho pra justificar o dinheiro que a Netflix investiu, o estúdio Trigger enfiou do nada uma carne de pescoço que passou do ponto e esperou a gente aproveitar ele como se fosse uma sobremesa depois da picanha, e fez essa bosta toda com a guerra nuclear e coisa e tal. Essa analogia com carnes está ficando cada vez mais estranha.

E por que o estúdio Trigger fez isso?

Por causa de Kill la Kill. Para quem não sabe, ele é o mesmo estúdio que fez Kill la Kill, e esse animê também possui um final absurdo com bifes envolvendo salvar o mundo inteiro. Só pra constar, eu adoro Kill la Kill, é um dos meus animês favoritos dos últimos anos.

E como Kill la Kill fez um puta sucesso, acho que tanto o pessoal do Netflix quanto o pessoal do Trigger decidiram que fazer uma coisa parecida com LWA ia ser uma boa idéia.

Só que não foi.

Porque em Kill al Kill, os bifes envolvendo a salvação do mundo estão ligados aos bifes pessoais da Ryuko, a personagem principal. A história dela vai evoluindo de maneira orgânica até o ponto que ela precisa salvar o mundo, pois a motivação inicial dela, vingar o pai, está ligada à pessoa que quer destruir o planeta: sua mãe.

Sem contar que desde o começo o universo é um absurdo sem fim, então quando os exageros acontecem, eles ainda estão dentro do esperado.

LWA não trabalhou esses absurdos em escala global desde o começo e não soube ligar os bifes da Akko com a salvação mundial, e por isso o final da segunda temporada é uma bosta.

E sabem o que é o mais irritante nisso tudo? O fato do segundo OVA saber trabalhar um bife muito melhor, e ter me prendido muito mais que essa porcaria de segunda temporada.

Porque o grande bife do segundo OVA é a amizade da Akko com suas melhores amigas, a Lotte e a Sucy.

Isso é infinitamente mais importante que uma guerra nuclear.

Que é o seguinte: nos OVAs, dá pra ver como a amizade da Akko é importante para a Lotte, mas o egoísmo da protagonista chega num ponto que a amiga não agüenta mais e se afasta, levando consigo a Sucy, que deu razão à Lotte.

Só que a Akko percebe como sua amizade com as duas é importante para ela também, e o resto do OVA inteiro é sobre o bife delas voltarem a ser amigas ou não.

E isso é muito, muito, muito melhor que uma guerra idiota que saiu de lugar nenhum, pois é a evolução do problema que acompanhamos desde o começo dos OVAs. Se você se importa com as personagens, você se importa com a amizade delas.

Por isso que o final da segunda temporada de LWA me frustrou tanto. Os personagens e seus relacionamentos são jogados de lado em prol de espetáculo, e eu detesto isso. Os melhores bifes envolvem os personagens e fazem as melhores histórias.

Fica melhor ainda quando dá pra juntar o bife do personagem com um bife espetacular e exagerado, fazendo um churrascão, que nem aconteceu em Kill la Kill. Espero que saia um desses do próximo projeto do estúdio. Infelizmente, em LWA ficamos com uma carne de terceira.

Agora, se vocês me dão licença, este papo todo me deu fome.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Perda, empatia e gente tosca no facebook

Olá.

Então.

Este texto era para ser uma resposta para um post que apareceu no meu facebook hoje, 14/01/2016, mas acabei decidindo que fazia mais sentido colocá-lo aqui.

Primeiro, um pouco de contexto: o ator Alan Rickman faleceu hoje, vítima de câncer. Estou sinceramente triste com isso, pois realmente admirava o trabalho dele em Harry Potter e em Die Hard.

Alguns dias atrás, em 10/01/2016, foi o músico David Bowie quem faleceu, também vítima de câncer. Ainda estou triste com isso, pois realmente gostava de diversas das suas músicas.

Tendo dito isto, nenhuma das duas mortes me deixou, digamos, arrasado. Eu gostava e admirava muito tanto eles quanto seus trabalhos, mas não foi tão forte, para mim, quanto o falecimento de Sir Terry Pratchett e de Satoru Iwata-san.

Mas não é por isso que eu vou criticar ou desmerecer a dor que muita gente está sentindo nestes dias.

Porque eu tenho certeza que, para muita gente, a perda desses dois artistas provavelmente está sendo tão, ou até mais, dolorosa quanto a morte do meu autor favorito e de um dos meus desenvolvedores favoritos de games foi para mim.

Sério, podem chorar, ficar bravos, descarregar a frustração no twitter, postar longas declarações de amor e perda no facebook, que eu imagino como deve estar doendo. Se fazer isso ajuda, faça. Eu vou ler tudo o que vocês postarem. É só eu conseguir achar, porque internet.

A única coisa que eu não admito, e que apareceu no meu facebook, e que está me enfurecendo, são pessoas relativizando a dor alheia com declarações como “milhares morrem todos os dias” ou “mas ninguém aqui está derramando uma lágrima sequer pelas crianças morrendo na África” ou “ninguém é melhor que ninguém, não chorem por ele”.

Não faça isso.

Não desmereça ou despreze a dor alheia, ainda mais quando ela vem do falecimento de alguém.

Para começar, fazer isso é uma das coisas mais escrotas e desprezíveis que alguém pode fazer. Imagino que quem faz isso o faz como uma demonstração de poder, mesmo que não perceba. Me parece que essas pessoas querem esfregar na cara do mundo que “há, não estou triste, essa morte não me afeta, sou melhor que vocês!”

Não. Errado. Você não é melhor que ninguém, só está agindo como um sociopata desagradável, um bostinha chamando atenção.

Esse é um grande problema da nossa sociedade, nós valorizamos demais a ausência de sentimentos. Sentimentos ainda são vistos como fraquezas, e aquele que menos sente mais forte aparenta ser. Isso me parece ser um reflexo do sexismo arraigado na sociedade, que “homem não chora”, e como ser homem é melhor, chorar é ruim.

E isso é uma merda. Eu acredito muito que iríamos ser pessoas mais saudáveis e ter relacionamentos mais significativos se fossemos um pouco mais honestos com nossos sentimentos (sim, eu sou um ser meloso auto-ajuda), mas, infelizmente, ainda não conseguimos fazer isso. Parar de desmerecer a dor alheia seria um ótimo primeiro passo para termos uma sociedade mais emocionalmente saudável.

“Ah, mas as pessoas que estão afirmando isto não o fazem para desmerecer a dor dos outros, mas sim o fato dessas pessoas estarem tristes por alguém que elas nunca conheceram! Elas só estão tristes porque morreu um artista famoso.”

Então.

Não justifica.

Na verdade, é ainda pior, de certo modo.

Porque essa crítica, se é que posso chamar isso de crítica, está ignorando o papel e o poder da arte na vida das pessoas.

Arte é criada a partir de idéias e sentimentos para nos fazer refletir e sentir. Seja um livro, um filme, uma música, uma pintura ou mesmo um videogame. Arte enriquece a vida das mais diversas maneiras, podemos dizer até que é algo que faz viver valer a pena.

Quando uma obra nos toca, nos emociona, ou mesmo nos faz repensar nossas idéias e nossa visão de mundo, nós a vinculamos com nossa própria personalidade, com nossa auto-imagem, e sentimos, com isso, uma conexão profunda com o artista que a criou.

É por isso que ficamos tristes quando alguém que criou algo importante para nós morre. Nós sentimos como se essa conexão tivesse sido cortada. Esse artista, que nos ajudou a entender mais sobre nós mesmos, cujo trabalho se tornou uma parte importante da nossa identidade e que parecia que sempre estaria lá, com uma obra nova, enriquecendo nossas vidas, de repente, se foi.

E isso dói. Muito.

Não importa que nunca o conhecemos ao vivo, ou que não temos nenhum grau de parentesco. Essa conexão criada através da arte é algo muito profundo, um laço muito importante para nossas vidas.

Por isso que é um comportamento lamentável criticar aqueles que sofrem com a perda de um artista. Porque você não apenas está sendo insensível com a pessoa que está sofrendo, você também está sendo obtuso e ignorante com o poder e o valor da arte na existência humana.

Agora que estou pensando, é capaz de que quem critica aqueles que sofrem pela perda de um artista nunca tiveram esse tipo de experiência. Nunca viram ou ouviram ou vivenciaram uma obra de arte que a tocou profundamente, que enriqueceu a vida dela. Talvez eu não devesse estar furioso com essas pessoas, mas sim triste por elas.

Porque não deve ter nada mais triste que viver uma vida sem arte.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Jessica Jones, uma super-heroína

Olá. Faz tempo que não escrevo aqui, não? É que o blog sobre games tem consumido todo meu tempo livre para escrever nos últimos tempos (tenho um blog sobre games, aliás, visitem-no).

Mas surgiu um assunto que eu realmente quero escrever sobre e que não tem a ver com games, por isso aqui estou. Antes de começar, porém, alguns avisos:

1 - SPOILER ALERT! Se você não viu Jessica Jones e não quer spoilers, não leia este texto ainda. Não pretendo pôr muitos spoilers, na verdade, mas vão ter alguns inevitavelmente. Sem contar que o que é spoiler para alguns não é nada de mais para outros, então prefiro deixar avisado que vai ter spoilers de qualquer jeito.

2 - Outras pessoas, provavelmente mais inteligentes e com mais autoridade do que eu, já devem ter discursado sobre o tema deste post em diversos outros momentos da história da humanidade. Mas eu quero dar a minha mijadinha intelectual aqui para marcar como meu o território referente ao assunto, então me deixem em paz para falar disto.

3 - Não li Alias, a série em quadrinhos que inspirou a série no Netflix, então é bem capaz de eu falar alguma bobagem sobre a personagem. Na real, nunca fui muito de ler HQs de super-heróis em geral, o que tira ainda mais credibilidade do que eu vou dissertar aqui. Mas sou um grande fã dos filmes e séries de super-heróis que andam saindo (mais as da Marvel, mas tenho muita curiosidade em ver o Flash).

4 - Este post não é uma indireta específica para ninguém em especial, só para a Thaísa do RH. Então, se você não é a Thaísa do RH e sentir que este post é sobre você, desculpa, não era a intenção te ofender, espero apenas que este post te ajude a refletir. Agora, se você é a Thaísa do RH, você está claramente errada e eu estou certo.

Ótimo, chega de avisos, vamos logo para o assunto:

O(s) tema(s) de Jessica Jones




Jessica Jones é muito bom. Muito mesmo. Espetacular. Não me considero um grande crítico de obras audiovisuais, mas senti que todos os atores mandaram muito bem, que os roteiros eram fantásticos, que a fotografia ficou foda e que praticamente tudo funcionou. Eu até tenho algumas pequenas críticas para pequenos detalhes da série, mas vou deixar elas fora deste texto que elas não vão acrescentar muito aqui.

De qualquer maneira: eu gostei pra cacete da série. Mais até que do Demolidor, virou a minha série de TV não animada favorita de super-heróis (ainda tenho um carinho nostálgico muito forte pela série animada do Batman). E eu sei que não fui o único a adorar a série, pois vi muita gente, tanto críticos quanto pessoas normais (vocês entenderam o que eu quis dizer com esta comparação) falando muito bem da série.

Mas eu vi um certo discursinho surgindo sobre Jessica Jones que me irritou profundamente:

“Jessica Jones não é uma série sobre super-heróis, é sobre relacionamento abusivos/abuso sexual.”

Muito bem.

Então.

Seguinte.

Antes que alguém queira gritar na minha cara, deixem-me esclarecer o que me irrita nessa frase.

Comecemos com a segunda parte da frase: relacionamentos abusivos/abuso sexual.

Sim, este é um dos, ou melhor, é O Principal Tema de Jessica Jones™. Não tem nem o que discutir, o comportamento do Kilgrave é praticamente um espelho de um parceiro abusivo, se colocando como um tipo de salvador da Jessica, e tratando todas as merdas que ele fez (e ainda faz) como se fossem um mimo, um agrado, para ela, sem perceber como ele está sendo intrusivo, violento e escroto. E, vendo o stress pós-traumático da Jessica, não tem como não perceber os paralelos com vítimas reais de abuso. Sem contar que eles tiveram a coragem de ir até o ponto mais crucial e horrível desse tipo de história, que é a reação das pessoas ao redor. Ninguém acreditava no que tinha acontecido com a Jessica e com a Hope, pelo menos não até ter acontecido com eles mesmos. Sério, se você não percebeu que este era O Principal Tema de Jessica Jones™, assista de novo prestando mais atenção.

E, só porque eu sinto que tenho que admitir isto, percebi que eu mesmo já fiz ou pensei em fazer algumas das escrotices do Kilgrave. Fiquei com um certo nojo de mim mesmo em alguns momentos da série, pra dizer a verdade.

Tipo o porão do meu apartamento, onde guardo todas as fotos da minha namorada. Espero que ela nunca descubra.

Mas enfim, não sou alguém com a capacidade ou a autoridade de aprofundar sobre algo tão complexo quanto O Principal Tema de Jessica Jones™ (apesar de que vou retomar o assunto mais pra frente).

O que eu quero dizer com tudo isto é que não é a parte sobre relacionamentos abusivos/abuso sexual que me irritou na citação acima.

O que me irritou foi a desconsideração pelos super-heróis.

Que super-poderes e heroísmo são, sim, temas de Jessica Jones.

Super-poderes para dar e vender


Qual foi a parte onde um cara pega uma serra circular Bosch e tenta serrar o próprio abdome e não acontece nada que você não percebeu que demonstrava a existência de super-poderes na história? Ou a moça que pula facilmente até o segundo andar de um prédio? Ou o cara que controla a mente dos outros só falando?

Sério, Jessica Jones fica alardeando a presença de super-poderes na série como se não houvesse amanhã. Acho até que tem mais super-poderes por página de roteiro em Jessica Jones que nos filmes do Capitão América, e num deles tem o Agente Smith Elrond Hugo Weaving com uma cabeça vermelha como se fosse uma caveira viva. (Nossa, é daí que vem o nome dele nos quadrinhos, o Caveira Vermelha! Que coisa.)

Além disso, é a super-força da Jessica que alimenta um dos principais questionamentos da personagem, sobre ela se tornar ou não a heroína que a Trish quer que ela seja (sim, tem toda a questão dela questionar os próprios valores morais, assim como o sentimento de culpa por ter matado a Reva, mas convenhamos: sem sua super-força, ela não ia ficar se cobrando tanto sobre se tornar uma heroína) (pelo menos na minha opinião).

E, é óbvio, os poderes do Kilgrave, que só fazem a história existir.

O que eu quero dizer é: Jessica Jones não apenas possui super-poderes, super-vilões e super-heroínas, como super-poderes fazem parte das motivações dos personagens e da estrutura da história. Falar que a série não é sobre super-heróis é uma afirmação tola, para dizer o mínimo.

– Mas, Vitor, – diz uma voz vinda do RH – a pessoa que fez tal afirmação só estava querendo fazer uma hipérbole com o objetivo de chamar a atenção para O Principal Tema de Jessica Jones™, que é algo importante de ser discutido em cultura pop e na sociedade como um todo!

Ok. Tudo bem. Se tem uma coisa que eu sei muito bem como funciona, é o uso de hipérbole na internet com o objetivo de chamar a atenção e manipular um discurso. E, de fato, O Principal Tema de Jessica Jones™ é infinitamente mais importante do que super-poderes, tanto culturalmente quanto socialmente falando.

Mas isso não muda o fato que essa hipérbole despreza o valor dos super-heróis, e eu acho que fazer isso só ajuda a piorar a discussão em torno d’O Principal Tema de Jessica Jones™.

O valor dos super-heróis


Comecemos admitindo o óbvio: super-heróis, ou pelo menos o conceito moderno de super-heróis na cultura pop (porque, se perguntar pra mim, personagens mitológicos como Hércules, Isis e Jesus são super-heróis também), nasceram como uma diversão para crianças. As histórias eram simples, coloridas e fantásticas, valores considerados até hoje exclusivamente infantis (por mais que não sejam, mas isto é assunto para outro dia), deixando esse estigma nas histórias de super-heróis como coisa de criança. Por isso que quando sai uma obra mais adulta ou com temas mais sérios envolvendo super-heróis, uma das primeiras reações de quem não conhece o assunto é dizer que nem parece ou que não é uma história de super-heróis.

Só que acontece o seguinte: super-heróis não são uma coisa só para crianças. Faz tempo. Ou vocês acham que a bilheteria dos filmes da Marvel consistem apenas de pais levando os filhos pro cinema? Claro que não. Super-heróis conquistaram diversas pessoas, das mais variadas idades e origens.

A questão é que super-heróis, na minha opinião, vão além de ser um tema ou um gênero de história: eles podem ser um instrumento diegético. Ou seja, super-heróis podem ser utilizados como um elemento do universo como outro qualquer para passar seu tema principal, sem necessariamente ser o foco central da narrativa.

Vou tentar dar um exemplo do que eu estou pensando com outra coisa que eu sinto que pode tanto ser um tema quanto um instrumento diegético (guardadas as devidas proporções): guerras.

O que você considera um filme de guerra? Um que foca nos soldados? Um que relata a sobrevivência dos civis envolvidos? Nós devíamos ensacar todos os filmes que envolvem alguma batalha de algum tipo no mesmo gênero também? Guerra nas Estrelas é tematicamente parecido com Nascido para Matar?

Não. Claro que não. Por mais que existam trocentas histórias sobre guerras, o foco varia muito. As mensagens que essas histórias buscam passar variam muito. Em muitas, a idéia é simplesmente narrar a superioridade do lado vencedor (pensem nas epopéias clássicas), em muitas outras o objetivo é mostrar a dor e o sofrimento dos sobreviventes. Histórias de guerra podem tanto focar no egoísmo e no lado negro dos seres humanos, assim como podem mostrar o lado bom da humanidade, onde alguns fazem o que podem para salvar a maior quantidade de pessoas possível.

Super-heróis, para mim, podem ser o mesmo (novamente: guardadas as devidas proporções).

Posso criar uma história onde o foco é nesse indivíduo especial que obtém super-poderes e como seus super-poderes o deixam super-poderoso? Posso. Mas eu também posso criar uma história que trabalha os problemas do vício, como isso afeta a vida de uma pessoa, mesmo que ela tenha super-poderes. Uma história sobre preconceito e racismo, onde os indivíduos com super-poderes são excluídos da sociedade. Uma história sobre encarar a própria morte, ainda mais quando se tem super-poderes e você é um ícone para muitos. Ou mesmo uma história de assalto com elementos humorísticos onde o assaltante possui super-poderes.

Se depois de ver esta página, que é a melhor história já escrita sobre o Super-Homem,
você ainda não ver o potencial diegético de super-poderes, vai enfiar a cara na privada.

E, é claro, uma história sobre relacionamentos abusivos e abuso sexual, onde os super-poderes do estuprador funcionam bem como metáfora para os poderes que a sociedade dá para aqueles que estão em posição de superioridade e cometem abusos.

Deu pra entender porque Jessica Jones é, sim, uma história de super-herói, ou melhor, uma história de super-heroína? E que isso não diminui, em absoluto, a qualidade da série?

Vou presumir que vocês responderam “sim”, até para eu poder continuar o texto e trabalhar a outra parte da questão toda: a importância de uma história de super-heroína abordar o tema de abuso sexual e relacionamentos abusivos.

Apresentando O Principal Tema de Jessica Jones™ para quem mais precisa entendê-lo


Vou fazer a próxima afirmação sem ir atrás de dados estatísticos que a comprovem, mas imagino que não precisarei deles para estar certo: o principal público consumidor das histórias de super-heróis, historicamente falando, sempre foi masculino.

Não estou falando que não existiam consumidoras do sexo feminino, mas sim que a maioria era masculina.

Isso, infelizmente, gerou uma conseqüência um tanto desagradável: muitas histórias de super-heróis sempre tiveram um forte cunho sexista. Na verdade, agora que estou pensando, não sei dizer se o sexismo existente na maioria das histórias de super-heróis foi conseqüência do principal público consumidor ser homem ou se ele foi usado nas histórias justamente para atrair o público masculino. Provavelmente foi uma mistura das duas coisas, com uma pitada de “a sociedade em que vivemos é sexista”.

Acho que podemos acrescentar uma dose de “burrice crônica”
e “completa falta de noção” na conta.

A questão é: histórias de super-heróis não são aquilo que eu chamaria de igualitárias na questão de gênero (nem de raça e nem de orientação sexual, mas essa deixemos essas discussões para outro dia).

A situação está melhorando nos últimos anos, mas ainda têm muitos problemas para serem resolvidos, tanto do lado da produção quanto do lado dos consumidores.

Com isso em mente, posso voltar a falar de Jessica Jones.

Para começo de conversa, a personagem principal de Jessica Jones é uma mulher (dã). Mais do que isto: é uma personagem complexa, com forças, fraquezas, virtudes e vícios. Pode parecer estranho, mas ter uma mulher retratada como um ser humano complexo já é um feito por si só. E não é só ela, temos também sua irmã adotiva/melhor amiga e sua advogada, outras personagens femininas com uma profundidade maior que o pires rosa usado normalmente para personagens assim.

Em seguida, temos o fato que todas essas mulheres não são desnecessariamente sexualizadas só para prender a atenção da audiência masculina na base da ereção. Se alguém foi sexualizado na série, foi o Luke Cage (aaaaabs), e nem foi muito exagerado. Só um pouquinho.

Para finalizar, temos O Principal Tema de Jessica Jones™.

Novamente, não me sinto com a capacidade ou a autoridade para aprofundar o assunto, mas só quero lembrar que o modo como a nossa “civilização” trata o assunto é terrivelmente escrota e sexista: temos a horrível tendência a duvidar e culpar a vítima (tipicamente uma mulher) e a justificar e atenuar as motivações do criminoso (tipicamente um homem). Mas, como já falei antes, Jessica Jones soube trabalhar bem o assunto e escancarar a canalhice do abusador (Kilgrave), a dor e o sofrimento das vítimas (Jessica, Hope e mesmo o Malcolm e o Simpson, entre outros) e a atitude escrota das pessoas em volta (Jeri, Luke, Clemons, etc).

Resumindo: Jessica Jones é uma história que soube representar mulheres como seres humanos e não como objetos e ainda trabalhou de maneira inteligente e realista (mesmo com super-poderes) um assunto que possui um forte viés sexista na sociedade, passando uma mensagem feminista importantíssima para as pessoas pensarem e analisarem sobre si mesmas.

E isso tudo é ainda mais importante porque Jessica Jones é uma história de super-heroína.

Porque ela representa uma evolução das histórias de super-heróis.

Porque ela é outro passo importante na questão de representatividade nas histórias de super-heróis.

Porque ela atinge um público que nunca teve muito acesso a obras desse tipo.

Porque ela amplia e apresenta para mais pessoas o potencial desse instrumento diegético que são os super-heróis.

Tirar isso de Jessica Jones, tirar da série a classificação de “história de super-herói” não a faz melhor, apenas reduz a importância histórica dela dentro da evolução das histórias de super-herói.

Apenas a diminui.

Conclusão


Super-heróis, super-vilões e super-poderes não são uma coisa inerentemente incultas ou pobres (narrativamente falando), eles são um instrumento diegético que, nas mãos certas, funcionam muito bem para criar analogias e metáforas com o mundo real e, assim, refletirmos sobre ele.

Infelizmente, esse instrumento foi, por muito tempo, usado para criar narrativas com um forte viés sexista e focadas num público-alvo masculino.

Mas a situação está melhorando. Novas histórias estão surgindo e tendo um tom mais inclusivo e igualitário.

Histórias como a de Jessica Jones.

Não sei se esta série vai ser realmente um grande marco da evolução da representatividade feminina em histórias de super-herói, ou sequer se ela realmente vai fazer uma grande diferença cultural em como lidamos com O Principal Tema de Jessica Jones™.

Mas uma coisa eu sei: Jessica Jones é uma história de super-heroína feminista que aborda uma questão social séria.

Tirar qualquer parte desta afirmação serve apenas para tirar mérito da série ou demonstrar sua ignorância.

E me irritar. Vocês não querem me ver irritado.

E aí? Já estão com medo?

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Sobre até onde uma empresa tem controle sobre seus funcionários

O assunto deste post surgiu por causa de assuntos ligados à industria de games, mas eu sinto que ele tem mais a ver com o meu blog pessoal, só que, ao mesmo tempo, acho que o assunto é interessante para o blog de games. Solução: postá-lo nos dois. Porque os blogs são meus e eu faço o que eu quero com eles, e eu sou um preguiçoso que não quer pensar em outro assunto para o blog de games nesta semana.

De qualquer maneira, o assunto de hoje nasceu por causa de dois acontecimentos recentes: a matéria do jornal japonês Nikkei sobre as condições de trabalho na Konami e a demissão de Chris Pranger da Nintendo.

Sobre o primeiro caso, esta matéria da Nikkei trouxe à tona as péssimas condições de trabalho na Konami, onde os desenvolvedores são vigiados de maneira orwelliana, tendo praticamente todo passo seu observado e documentado dentro da empresa e até mesmo fora dela, e uma cultura da empresa de realocar funcionários que não considera mais tão úteis para funções braçais, como limpeza ou a linha de produção de máquinas de pachinko. Seguindo essa matéria, outros lugares fizeram investigações próprias, descobrindo mais, como o fato da Konami já ter entrado em contato com empresas que contrataram ex-funcionários para denegrir suas imagens (dos ex-funcionários, não dela mesma ou das outras empresas).

Não é bem um Big Brother, mas é Big e é quem a Konami usa para vigiar os funcionários.

Quanto ao segundo, a história é que Chris Pranger, um funcionário da Nintendo Treehouse, a divisão da Nintendo of America que cuida da tradução de jogos, foi demitido após ter participado de um podcast chamado Part-Time Gamers. Não se sabe ao certo se foi simplesmente o fato dele ter ido ao podcast ou se foi alguma coisa específica que ele falou que levou à demissão, mas teorias é o que não falta por aí. Mesmo eu tenho a minha, que o que pegou com a matriz da Nintendo, no Japão, foi ele ter falado do Masahiro Sakurai, diretor de Smash Bros e criador de Kirby, como se ele fosse uma diva, por mais que ele (provavelmente, baseado no que já li) seja uma.

Estas duas histórias são semelhantes não apenas por envolverem empresas japonesas de games, mas porque elas giram em torno de algo que sempre me deixou pensativo: o quanto empresas podem/devem confiar nos funcionários, principalmente em relação à quantidade de informação detida por eles. É uma paranóia corporativa, um medo por parte das empresas de que seus funcionários as traiam e divulguem todos os seus segredos para o mundo, o que criou essa cultura de Acordos de Confidencialidade, ou Non-Disclosure Agreements, como é chamado em inglês (vou me referir a eles como NDAs daqui pra frente, por preferir a sigla em inglês).

Quanto mais eu pensava sobre esses dois episódios e sobre meu histórico como funcionário, mais eu não chegava à conclusão nenhuma. Por isso, resolvi escrever sobre o assunto, tanto para ver se eu descubro algum desfecho satisfatório na minha cabeça quanto para ver se alguém me ilumina quanto à questão (em outras palavras, comentem).

Porém, antes de começar, para variar um pouco, quero deixar claro sobre o que eu não estou falando aqui: isto não é sobre leis trabalhistas, isto não é sobre abuso de poder e bullying emocional em ambientes corporativos, isto não é sobre cultura empresarial que foca em competição e que transforma a vida dos funcionários em um inferno e isto não é sobre “o capitalismo é assim e ponto”. Talvez eu comente um pouco esses assuntos, mas eles não são o foco deste post (pelo menos eu acho que não).

Vamos lá, então?

Controlando a informação


Acredito que existam dois motivos principais para as empresas ficarem paranóicas com vazamento de informações.

O primeiro, e mais óbvio, é medo de que concorrentes conheçam segredos industriais e assim consigam copiar e lançar o mesmo produto antes. Ou, pior ainda, lançar uma versão melhorada. Ou, no pior dos piores dos casos, eles consigam patentear antes.

Por isso, faz sentido as empresas quererem proteger tais informações. Daí a marcação pra cima dos funcionários, tudo para proteger o mojo, baby. Simples assim, nem sei o que mais acrescentar.

Só que, nos dias de hoje (toda vez que alguém usa a expressão “nos dias de hoje”, além de demonstrar um vocabulário pobre, a pessoa fica parecendo uma velha), existe um segundo motivo, tão grave quanto o primeiro: perder o controle da informação e “queimar” o produto no mercado (até já falei mais ou menos disto antes).

Estamos vivendo numa era de hype, spoilers e facilidade de acesso à informação, então é do interesse das empresas informar os consumidores num ritmo calculado, tanto para eles não esquecerem que o produto existe como para que não desistam dele antes mesmo do lançamento, seja por ficar de saco cheio de tanto ser bombardeado por propagandas quanto por saber que no final tudo era um sonho exibicionista do Coisa, e que ele sempre quis andar pelado por aí. Um exemplo bom é com trailers, tanto de filmes quanto de games: há um planejamento forte quanto à data de lançamento de cada trailer e o que cada trailer vai revelar, justamente para que o filme/game fique na mente das pessoas, e quanto mais próximo do lançamento, mais “lembretes” a empresa manda.

Por isso, quando uma informação vaza, seja por causa de um funcionário, seja por causa de um consumidor com um celular, todo o plano vai por água abaixo, e as empresas menos competentes ficam de mimimi enquanto que as mais espertas tentam usar isso a seu favor.

De qualquer maneira: as empresas querem manipular a informação ao máximo e qualquer furo no plano é um stress desgraçado, por isso é preciso garantir que a ela não vaze.

Em última instância, esses dois motivos giram em torno de garantir um mercado para o produto, seja evitando que a concorrência roube consumidores em potencial, seja evitando que os próprios consumidores percam o interesse. E, sem um mercado, a empresa corre o risco de falir. E falência é ruim.

Como os funcionários são aqueles que mais informações detêm sobre o produto, é preciso encontrar um meio de impedí-los de vazar essas informações. Daí a existência de NDAs e a marcação toda sobre o que eles fazem na internet e com quem eles conversam.

Só que tem hora que isso passa dos limites.

Controlando os funcionários


Eu não sei como falar isso sem ser constatando aquilo que era para ser o óbvio: não é para as empresas ficarem tratando os empregados como se eles fossem propriedade delas. Ou melhor, vamos refrasear isso assim: é para as empresas tratarem os funcionários como seres humanos. Ponto.

Pikmins, em compensação, podem ser destratados e abusados à vontade.

Portanto, essa coisa da Konami de ficar vigiando a vida dos empregados e querendo controlar cada santo passo que eles dão é um absurdo. Acho que esse é um dos motivos para existirem leis trabalhistas: evitar que o trabalhador vire um escravo. Mas, como já disse antes, não vou discutir essas leis, até porque elas variam de país para país, e é bem possível que tudo o que a Konami fez esteja dentro da lei japonesa. Sem contar que não sou advogado nem nada parecido.

Ao mesmo tempo, acho que as empresas estão no direito delas de exigir sigilo dos funcionários. Afinal, como já expliquei antes, é importante para elas controlarem a informação.

Só que aqui está a parte que muitas empresas não entendem: também é do interesse dos funcionários que essas informações continuem sigilosas. Elas podem influenciar o sucesso do trabalho ou mesmo o futuro do emprego deles.

Quero dizer, é do interesse deles se eles entendem a importância delas.

Que eu acho que esse é outro grande problema: uma falta de alinhamento entre o que a empresa e o que o funcionário acha importante ser sigiloso. É o que me pareceu que aconteceu no caso do Chris Pranger: a Nintendo começou a dar mais liberdade para os empregados, ele achou que tudo bem falar certas coisas num podcast, só que não era. Faltou deixar mais claro para ele o que podia e o que não podia ser dito, assim como faltou da parte dele ir perguntar para os chefes se tudo bem ele ir num podcast.

Aliás, essa é outra coisa complicada, pois ele devia ter que pedir permissão, como uma criança, sobre o que ele pode ou não pode fazer? Como envolve a mídia, quero dizer que sim, mas como alguém que quer confiar mais nos seres humanos e quer tratar outros adultos como pessoas responsáveis, quero dizer não. No final das contas, acho que a resposta correta é que ele devia ter pedido orientação. É diferente de permissão, porque ir ou não é algo que ele deve decidir, mas como ele estaria representando a empresa e não é alguém da área de relações públicas, seria do interesse dela orientá-lo sobre o que ele poderia ou não falar.

No final das contas, tenho a impressão que tudo volta a uma coisa que nunca entendi direito: esse antagonismo entre a empresa e seus empregados, que muita gente, tanto chefes quanto funcionários, gostam de cultivar, como se fossem inimigos mortais que estão em guerra.

A não ser que você trabalhe para este filho da puta, que esse é um inimigo da humanidade.
Só de olhar pra cara dele quero socar o monitor (referência, para quem não conhece).

Agora que vou escancarar os anos que passei trabalhando com comunicação corporativa, treinamento de gestão e e-learning, mas eu realmente acredito que, numa empresa, todo mundo é um profissional responsável cumprindo uma função combinada, e se alguém falta com suas responsabilidades, seja o chefe atrasando salário (coisa que já passei), seja o funcionário que faz tudo de qualquer jeito e sobra para os outros consertarem (coisa que também já passei), é para resolver o problema com o indivíduo em questão, e não rotular todos como “o inimigo”. E estou falando tanto dos funcionários que tratam todos os chefes como escrotos que só querem ferrá-los como dos chefes que encaram todos os funcionários como vagabundos que só querem sugar o dinheiro da empresa.

E, antes que pareça que estou propagandeando aquela visão cor-de-rosa de gestão onde todo mundo veste a camisa e faz parte da família e sei lá o que mais, estou falando de uma visão mais mercenária e “honrada” do mundo mesmo: se existe um acordo com recompensa financeira e um contrato, é para cumprir com ele porque é assim que pessoas responsáveis e legais devem agir, e é para nos tratarmos como pessoas responsáveis e legais. Se alguém é irresponsável e/ou escroto, aí a gente muda de postura, mas só com o irresponsável escroto, e não com todo mundo.

Já estou ficando redundante de novo mais uma vez, repetindo a mesma idéia com palavras diferentes. Acho melhor concluir logo a coisa toda.

Conclusão


Até onde uma empresa pode controlar a vida dos funcionários?

A resposta ideal seria “nenhum lugar, não é para empresa nenhuma se meter na vida dos funcionários e ponto.”

Mas nós não estamos no mundo ideal, então a melhor resposta que consegui chegar enquanto escrevia isto é: “depende de acordo com o que for combinado entre a empresa e o funcionário, e ambas as partes tem que saber o que é e o que não é importante para cada uma e assim determinar quais informações podem ou não podem sair da empresa.”

Gostaria de acrescentar também um “e também não é para ser escroto.” Óbvio.

E, só para voltar para os dois acontecimentos que me levaram a escrever tudo isto, do modo como enxergo, a Konami está sendo escrota com os funcionários e o Chris Pranger e a Nintendo não souberam se comunicar, levando a uma decisão drástica. Infelizmente, acontece. Tanto as decisões drásticas quanto as empresas escrotas.

Links


Report: Konami Is Treating Its Staff Like Prisioners (Kotaku)

• Sources: When You Work At Konami, Big Brother Is Always Watching (Kotaku)

• The Silent Hell That Is Konami (The Jimquisition)

• Nintendo Fires Employee For Speaking On Podcast (Kotaku)

• Talking Point: Nintendo's Dismissal of Chris Pranger Highlights Issues With Company Culture (Nintendo Life)

• No, the gaming industry isn't too secretive (Polygon)

sábado, 11 de julho de 2015

Quando você descobre que só fala de si mesmo

Este post vai conter uma ironia muito grande decorrente da sua própria existência, ponto positivo pra quem pegar antes de eu revelar qual é no final.

A felicidade da criança recebendo um ponto positivo. E, para quem não viu Inside Out ainda,
vá ver, que é muito, muito bom.

Nestes últimos tempos, estive me dedicando bastante ao meu blog sobre games. Me esforcei bastante e por dez semanas consegui manter ele com pelo menos uma atualização por semana. Esta vai ser a primeira que não vou conseguir postar. Quero dizer, esta semana em que comecei a escrever este texto, pode acabar acontecendo de eu demorar mais de uma semana escrevendo-o (acontece bastante, tenho vários textos começados e parados há mais de mês) (o post do arroz dourado, por exemplo, levei uns dois meses pra terminar) (a partir do momento que parte da idéia dos meus blogs é eles serem um porta-fólio, admitir que eu demoro escrevendo deve ser a pior das idéias) (o mais correto em português é porta-fólio, estou pasmo também). Sem contar que pode acontecer de eu conseguir escrever alguma coisa rápida antes de sábado e assim manter a minha promessa de um post por semana lá, mas não garanto nada.

De qualquer maneira, estou escrevendo aqui para falar sobre o que me bloqueou completamente para escrever no blog sobre games, e que me afundou numa das minhas crises depressivas que fazia tempo que eu não tinha. O fato do meu remédio ter acabado e eu ter ficado um dia sem ele influenciou, assim como uma explosão de raiva grande que eu tive com a minha família (e que me inspirou para escrever este post no blog sobre games), mas o principal fator nessa minha última crise foi a constatação de que tudo que eu escrevo é sobre a mesma coisa: eu mesmo.

Prova fotográfica da minha explosão de raiva. E, sério, vá ver Inside Out. É realmente muito bom.

Eu. Eu eu eu eu eu. Eu.


Quando comecei o blog sobre games, um dos meus objetivos era fazer com que eu escrevesse mais, já que eu demoro para achar assuntos para falar aqui e os meus outros projetos são mais de longo prazo. A solução encontrada foi escrever sobre videogames, que é uma coisa que eu gosto muito e acompanho avidamente. Outro objetivo era que eu escrevesse de uma maneira diferente daqui, que eu tentasse ser mais “““““““jornalístico”””””””, mas que ainda assim eu emitisse uma opinião.

Pode parecer meio contraditório querer ser mais jornalístico, uma modalidade de escrita que preza muito a imparcialidade, e ao mesmo tempo querer emitir uma opinião, mas isso é fruto de uma crença que eu tenho sobre a humanidade: nossa visão nunca é neutra de verdade, pois nossas vidas moldaram nossa percepção do mundo e sempre vamos emitir um julgamento sobre tudo o que vemos e vivemos, logo a imparcialidade do jornalismo não existe, pois os jornalistas são humanos. Quando tivermos robôs jornalistas, aí é outra história. E sim, deve ter um monte de pensadores e acadêmicos infinitamente mais inteligentes que eu que já falaram disso e já pensaram sobre isso, mas a questão aqui não é a busca fútil por imparcialidade por parte do jornalismo, mas como esses dois objetivos influenciaram e guiaram os textos no meu blog sobre games, onde eu emitia a minha opinião mas tentava ter um certo ar mais impessoal.

Pelo menos no começo.

Que rapidamente eu comecei a encher o blog de “Hora da historinha”, o subtítulo que eu inventei para introduzir algum relato da minha vida pessoal. Ou seja, ao invés de um blog sobre games, tudo o que eu criei foi um blog sobre a minha pessoa e minhas experiências com games, não muito diferente deste aqui. Só que com mais games.

Eu só fui perceber isto depois de ter postado o texto “Sobre videogames e conflitos de gerações”, onde o tema em questão realmente é algo muito pessoal para mim, e o post ficou focado quase 100% na minha pessoa e na minha vida. A ficha caiu enquanto eu relia pela sétima vez o texto depois de postado (hábito que eu tenho, ficar relendo o que escrevo depois de ter postado procurando erros de português e de lógica).

Tudo bem se eu só escrevesse esses tipos de posts de vez em nunca, aqui e ali, e concentrasse o blog em algo interessante de verdade, como videogames. Mas eu fui relendo alguns dos posts anteriores e fui percebendo que praticamente todos tinham uma dose de “aqui está minha vida, aqui estou eu, olhem pra mim, me aceitem, eu, eu, eu, eu.”

Sabe quando o viés de confirmação depressivo fica preso no onze e tudo o que você vê é aquilo que confirma que você é um bosta? Foi isso que aconteceu. E isso me deixou péssimo.

A tristeza assumiu os controles por dias. Mas, como aprendi vendo Inside Out,
ficar triste faz parte da vida. Vá ver e aprender isso também.

Tudo o que eu percebia era que meus textos eram uma pilha de lixo ególatra focada no meu umbigo e que eu era um metido egocêntrico que não acrescenta nada à raça humana e que ficava choramingando para o mundo por aceitação e atenção.

Daí, eu travei. Não conseguia escrever mais nada. Comecei uns dois textos diferentes pro blog sobre games e tentei continuar um conto que estou escrevendo para um concurso, mas não saía nada. Eu começava a escrever e tudo o que eu lia era eu falando sobre mim mesmo.

Como é que o Woody Allen consegue? Que, para mim, não parecia que ia dar. Cheguei bem perto de deletar os dois blogs e desencanar de escrever para sempre.

Mas passou.

Ou melhor, acalmou. Depois de um pico depressivo e alguns dias chafurdando na caixa de areia dos gatos, voltei a me sentir melhor. Pelo menos um pouco. Quinho. Acho que ter retomado o remédio ajudou.

Nessa, decidi reler tudo o que eu escrevi no blog sobre games e alguns dos textos neste blog para ver se eu realmente era tão egomaníaco quanto eu estava achando.

A conclusão que eu cheguei: mais ou menos.

A parte de eu me achar o centro do universo e só falar de mim mesmo a minha depressão exagerou, não sou tanto assim. Só uns 38% do tempo, eu diria. Mas a parte de eu ser um inseguro desesperado por aceitação? Essa parte é verdade, e é o que me faz falar tanto sobre mim.

Eu eu eu eu eu sou assim, me aceitem, pensem que nem eu


O que foi que eu percebi nessa minha releitura toda?

Que toda vez que eu opinava sobre alguma coisa, eu começava a explicá-la e justificá-la, e o modo que eu sempre escolhia para fazer isso era expondo um episódio na minha vida pessoal que contribuiu para eu pensar desse jeito.

O que faz todo o sentido do mundo, afinal de contas é assim que formamos nossas opiniões, um evento ou uma seqüência de eventos moldando nossa visão de mundo. Muitas vezes leva algum tempo até a gente entender o que aconteceu e como isso nos afetou, mas a questão é: nossas experiências constróem nossas opiniões. Espero que todo mundo concorde com isso.

Mas isso acabava por rechear o blog sobre games com “eu” ao invés de games. O foco passou de eu opinar e comentar games a eu ficar me explicando e justificando desesperadamente a minha opinião do que necessariamente acrescentar algo ao hobby.

Com isso, eu não apenas conseguia (ou pelo menos tentava) que vocês, leitores, entendessem a minha opinião como também a aceitassem, ou pelo menos aceitassem que eu a tenho. Ou seja, era uma maneira de evitar uma discussão.

Que discussões e conflitos são alguns dos meus maiores medos. Outro medo meu são aquelas mariposas gigantes,
fico apavorado. E eu sei que vocês já entenderam que é pra ver Inside Out, mas como temo que a mensagem
ainda não chegou a todos, aqui estou falando de novo: vá ver Inside Out.

A partir do momento que eu foco o texto na minha experiência ao invés da minha opinião, fica (um pouco) mais difícil de comprar uma briga. Por exemplo: uma coisa é eu falar que Fire Emblem é a melhor série de games de todos os tempos, outra coisa é eu falar que Fire Emblem é a minha série de games favorita de todos os tempos e outra coisa é eu falar que Fire Emblem é a minha série de games favorita de todos os tempos porque nela eu sinto que consigo superar a minha auto-imagem de alguém que nunca teve nada a acrescentar à vida de ninguém e que, desde criança, sempre enxergou as poucas vitórias na vida como um “não fez mais que a obrigação”, pois no universo de Fire Emblem eu sou uma presença importante na vida desses personagens, fazendo alguma diferença na felicidade deles (criando casais e BFFs) e conduzindo-os a uma vitória significativa (salvando o mundo).

Dá pra pegar a diferença? É mais fácil discutir comigo nas duas primeiras observações, basta falar que “Fire Emblem não é a melhor série de games de todos os tempos, é Angry Birds porque vendeu mais e é mais reconhecido” ou “Fire Emblem só é a sua série favorita porque você nunca jogou Need for Speed”, ou seja, o meu interlocutor imaginário só precisa determinar parâmetros de comparação diferentes que assim ele consegue desmerecer a minha opinião.

No terceiro caso, porém, a discussão iria pra onde? Questionar a minha experiência de vida? Falar que “você nunca se viu como alguém que nunca teve nada a acrescentar à vida de ninguém”? Falar que Fire Emblem não me faz sentir melhor em relação à minha auto-imagem? Não tem como o meu interlocutor imaginário discutir isso, pois ele não sou eu e não tem como ele ter autoridade sobre os meus sentimentos e a minha percepção. Ele pode questionar se o que eu sentia estava de acordo com o que realmente estava acontecendo, mas ainda assim não dá pra negar o que eu sentia. Aliás, essa é outra parte do “truque” aqui: sempre ressaltar que tudo não passa do meu ponto de vista e dos meus sentimentos, e não de uma realidade objetiva e quantificável, criando uma situação onde “gosto não se discute”, ou pelo menos “o gosto do Vitor não se discute”.

O que eu faço nada mais é do que mudar o foco da discussão da qualidade de Fire Emblem para “foi assim que cheguei à minha opinião”, e não tem como elaborar uma discussão séria e/ou interessante no segundo caso. É assim que eu estou sempre certo: a partir do momento que eu só estou falando do que eu penso e sinto, não tem como eu estar errado, pois só eu sou eu.

A única coisa que eu posso falar a favor dos meus posts é que pelo menos eles nunca caíram muito descaradamente num “olhem pra mim, coitadinho de mim, me amem”. Mas que bateu na trave algumas vezes, bateu.

Conclusão


Nós, seres humanos queremos ser aceitos. E eu, numa tentativa desesperada de ser aceito, criei textos que são pedantes no excesso de auto-explicação no melhor dos casos ou são egocêntricos e auto-centrados no pior.

Não era isso o que eu queria. Pelo menos não no blog sobre games, que aqui vai continuar focado na minha pessoa, já que aqui é o meu blog pessoal.

Meu objetivo no blog sobre games era emitir opiniões e comentários para fazer os leitores refletirem sobre o assunto. Daqui pra frente, é o que eu vou tentar fazer, me explicando menos e deixando o diálogo fluir mais.

Se eu vou conseguir, isso são outros quinhentos.

Ah, e a ironia inerente deste post, para quem não pegou: é que este é um texto onde eu falo de mim mesmo e me explico incessantemente tentando justificar a minha percepção de que eu só escrevo sobre mim mesmo e só fico me explicando incessantemente tentando justificar minhas opiniões. Não sei se isso se classifica como uma ironia de verdade ou como uma ironia Alanis Morrissete, mas me pareceu irônico. Que nem uma mosca preta num Chardonnay.

Não sei se isso realmente é irônico, Alanis, mas é nojento.
Quanto ao resto da humanidade, vá ver Inside Out.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Arroz vitaminado

Olá. Faz tempo, não? É que eu tenho me dedicado um pouco mais ao blog sobre games, não tenho tido tempo o bastante para escrever aqui. Aliás, fiz um blog sobre games. Visitem lá também, caso o assunto interesse. Inclusive, resolvi incorporar aqui a divisão por tópicos que eu faço por lá, com conclusão e tudo.

Só que houve outro motivo para a demora deste post: pesquisa. Estive estudando o que pude nestas últimas semanas para me sentir seguro o bastante para escrever sobre o tema deste post: o arroz dourado.

Sim, este brasileiro descendente de japonês vai falar de arroz. Mais clichê que isso, só se fizesse um mangá de carnaval.



Nota mental: criar um mangá de carnaval.

O próximo fenômeno da Shonen Jump.

De qualquer maneira, arroz dourado. Se você já ouviu falar dele, você provavelmente já tem uma posição sobre o assunto. Mas eu ia ficar muito feliz se você lesse até o final antes de comentar para entender meu ponto de vista. Ah, e não dá spoiler para quem não conhece o que é, por favor.

Vamos lá?

Conceitos básicos


O que é o arroz dourado? É um tipo de arroz. E é dourado. O que faz dele o melhor arroz, pois Gold is Best. Best. Best. Best.

Mas mais do que isso, ele é um arroz enriquecido com betacaroteno.

Alguém lembra o que é betacaroteno? Das aulas de biologia da sétima série/oitavo ano?

Tem o link para a Wikipedia aqui, caso queira ler com detalhes, mas vou fazer um resuminho simples: betacaroteno é, além de uma palavra muito boa para forca, um pigmento que pode ser ou amarelado ou alaranjado e que está presente em diversos vegetais, como a cenoura, a abóbora e a manga. Ele que dá a coloração do arroz dourado. Seu principal papel relacionado à saúde humana é ser a mais importante fonte de vitamina A da nossa alimentação. Até onde meu conhecimento de leigo pôde chegar, nossos intestinos delgados sintetizam o betacaroteno com proteínas produzidas pelo nosso corpo e absorvem a vitamina A resultante. Provavelmente é bem mais complexo que isso, mas acho que deu para ter uma idéia.

Portanto, o propósito de enriquecer o arroz com betacaroteno é termos um arroz que seja uma fonte de vitamina A.

Alguém se lembra da importância de vitaminas? Da vitamina A (me dá)? Das propagandas de Danoninho e Bono e Passatempo e sei lá o que mais que tinha vitaminas e minerais para crianças?

Novamente, para quem quiser, links para a Wikipedia: vitaminas e vitamina A. Explicação simplificada feita por um leigo (eu): vitaminas são compostos químicos necessários para a nossa saúde/sobrevivência e que o corpo não consegue produzir sozinho, então é preciso comê-los (no caso da vitamina D, além de ingerí-la precisamos sintetizá-la com a luz do sol). Um fato interessante é que vitaminas variam de organismo para organismo - cachorros, por exemplo, não precisam de vitamina C, eles a produzem naturalmente (se saudáveis). Só que essa definição descreve um monte de coisas, como minerais, proteínas, gorduras, pão de queijo, Coca Cola, etc, então precisamos refinar a definição de vitamina. Aí que a coisa complica um pouco, porque a classificação exata me parece uma coisa meio arbitrária, só para manter a palavra “vitamina” viva. Basicamente, vitaminas são os compostos orgânicos que precisamos menos que outros mas com uma freqüência maior que os demais. Sério, pelo que eu li, me pareceu que essa é a única diferença. Se alguém melhor informado que eu puder me ajudar a esclarecer isto, agradeço.

Enfim, a vitamina A é “a da visão noturna”, como decorei para uma prova e me lembro até hoje, sendo muito importante para nossa visão em geral, não só a noturna (inclusive, se bem me lembro, uma das minhas professoras até falou que a piada da cenoura ser boa para os olhos e é por isso que não vemos coelhos usando óculos tinha um fundo de verdade por causa da alta quantidade de vitamina A na cenoura). Ela também é importante para a manutenção do sistema imunológico, replicação genética, saúde da pele e outras coisas mais que tenho medo de listar para não correr o risco de passar informação errada.

A única coisa que eu quero acrescentar é que suplementos vitamínicos, a não ser que você tenha sido diagnosticado com um problema de saúde por um profissional sério de medicina de verdade, não são necessários para o nosso dia-a-dia. Traduzindo: não fiquem se enchendo disso na base do achismo que não ajuda em nada e é possivelmente perigoso.

Se bem que, como estou sempre ressaltando, não sou um especialista, só estou repassando o que tenho de informação. Inclusive, se alguma coisa que eu falei estiver errada, me avise que posso muito bem corrigir este texto.

Continuando com a vitamina A: ela é importante para nossa saúde e a falta dela pode gerar diversos problemas, de cegueira até morte, principalmente em crianças e grávidas.

Sério.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, entre 250.000 e 500.000 crianças perdem a visão por ano decorrente da falta de vitamina A. Sim, a variação entre esses dois números é bem alta, imagino que seja por causa da dificuldade de registrar todos os casos, principalmente em regiões mais pobres ou de difícil acesso. Mas mesmo que tomemos o número mais conservador, estamos falando de 250.000 crianças perdendo a visão por ano. É muita gente. Para piorar esse fato já deprimente, é estimado que aproximadamente metade dessas crianças que perderam a visão eventualmente morra por falta de vitamina A.

Ou seja, vitamina A é uma coisa importante.

Ainda de acordo com a OMS, a África e o sudeste asiático são os principais pólos desse problema, onde não há acesso fácil a fontes boas de vitamina A. Mas não é como se o problema não existisse no Brasil, encontrei alguns artigos e estudos comentando sobre a deficiência nas camadas mais pobres da população brasileira e que é um problema de saúde pública sério, mas pelo que entendi, eles foram feitos com amostragens relativamente pequenas, por isso não são o suficiente para termos uma noção precisa do tamanho do problema. Se bem que posso estar desatualizado, se alguém tiver informações mais novas, por favor me indique.

Assim voltamos ao arroz dourado.

A épica epopéia de uma descoberta científica, o arroz dourado parte I: A origem


Se você não pegou a referência, não se preocupe que provavelmente vão fazer mais 
quinhentas crises e reboots para recontar esta história.

Como dá para imaginar, o problema da falta de vitamina A em regiões mais pobres do mundo não é de hoje. Diversos programas já foram testados em diversas regiões do mundo, como distribuição de suplementos vitamínicos e campanhas de educação alimentar mas, infelizmente, a maior parte deles obteve sucesso limitado e por isso sempre estivemos (estou usando o “nós, a raça humana”) buscando novas soluções para resolver ou pelo menos aliviar o problema. Uma das soluções pensadas era tentar enriquecer alguma comida com vitamina A, assim como fazemos com o iodo no sal de cozinha ou o flúor na água, para facilitar o acesso da população à vitamina usando um alimento que já é parte de sua rotina alimentar. Pode parecer uma solução um tanto paternalista, mas às vezes um governo tem que levar a saúde até a população de um jeito ou de outro.

Infelizmente, essa não era uma tarefa fácil, e em vários níveis.

O primeiro grande obstáculo tinha a ver com o lado científico da coisa toda: cereais e grãos, como arroz e cevada, por exemplo, eram alimentos considerados complexos demais para enriquecer com qualquer coisa na época.

Que época é essa? Estou falando das décadas de 1970 e 1980, para vocês terem uma idéia de quando começou-se a tentar criar essa solução. Muito se estudou e se experimentou sobre o assunto, mas sempre surgia um problema novo. Não que isso não faça parte do progresso científico, e em 1990, após muito suor, finalmente veio o ponto de virada, quando um casal de cientistas indianos trabalhando na Suíça, Swapan e Karabi Datta, conseguiram desenvolver um método de trabalhar o arroz que permitiria seu enriquecimento com betacaroteno.

…Na teoria.

Ou melhor, já que estamos falando de ciência, vamos usar a terminologia correta: hipoteticamente, seria possível usar o método criado pelos Dattas para enriquecer o arroz com betacaroteno, mas antes seria preciso experimentar para ver.

A questão é que o trabalho deles não tinha o enriquecimento do arroz com betacaroteno como objetivo principal, ele girava em torno de conseguir melhorar a produção de arroz, pelo que eu entendi. Não consegui ler o estudo porque não o encontrei disponível de graça, mas acho que mesmo se eu tivesse lido não ia entender muito profundamente a questão toda, não sou um especialista na área.

Só que um cientista alemão chamado Ingo Potrykus, que era, na época, um dos diretores desse centro de pesquisas suíço onde os Dattas trabalhavam, que foi o responsável por contratá-los, principalmente por acreditar no potencial do trabalho deles com arroz, e que sempre se dedicou ao estudo de cereais e como usá-los para melhor alimentar a humanidade (sério, pelo que eu li, esse cara dedicou a vida a tentar descobrir meios de melhor nutrir literalmente todo mundo) olhou para os resultados obtidos por eles e disse:

– Bicho, teu estudo é supimpa! Vai dá pra pôr um betacaroteno massa nesse arrozinho, morô?

Era o final dos anos oitenta, as pessoas falavam assim na época. Acho.

De qualquer maneira, Ingo resolveu iniciar um projeto com o objetivo de enriquecer o arroz com betacaroteno.

Antes de falar desse projeto, acho interessante parar um pouco e responder à seguinte pergunta: por que tanta obsessão com arroz? Por que não enriquecer o trigo, ou a cevada, ou qualquer outro cereal ou grão?

A resposta pode parecer meio preconceituosa, mas como é verdade e eu sou descendente de asiático, eu posso falar com todas as palavras: porque como um dos principais pólos de deficiência de vitamina A é o sudeste asiático e lá se produz e se come arroz pra burro, o arroz é o veículo perfeito para suprir a necessidade de vitamina A. Tipo, lá se come muito arroz mesmo. Comer arroz é parte da identidade cultural. Arroz faz parte das três refeições diárias, se a maior parte da população local tivesse como ter três refeições diárias. Nem sei porque estou explicando tanto, a gente come arroz a rodo aqui no Brasil também, dá pra entender o porquê da escolha do arroz. Arroz, arroz, arroz.

De tabela, o arroz também é muito consumido em partes da Índia, outro lugar que sofre bastante com falta de vitamina A, e em algumas regiões da África (apesar de que eu acho que a solução sendo estudada para a África é a batata doce, mas essa é outra história).

E por que o arroz é tão consumido nesses lugares? Porque ele cresce nesses lugares. Não ia adiantar fazer, digamos, um trigo enriquecido com betacaroteno se não há condições adequadas para o plantio de trigo.

Sem contar que, se a solução fosse fácil assim, simplesmente levar outra hortaliça para lá, plantá-la e introduzí-la no cardápio local sem nenhuma resistência, já tínhamos enchido a região de cenoura e pronto.

Resumindo: arroz lá é que nem arroz com feijão aqui: todo mundo come. Por isso que o nosso cientista alemão Ingo queria tanto achar uma maneira de enriquecer o arroz com betacaroteno.

Vencida a primeira grande barreira científica, estava tudo pronto para começar mais uma grande jornada de estudos, experimentações e análises rumo à descoberta de novos meios de salvar a humanidade.

Só que ainda faltava uma coisa: dinheiro. O segundo grande obstáculo da nossa história.

A épica epopéia de uma descoberta científica, o arroz dourado parte II: A jornada


Se você não pegou a referência, não se preocupe que provavelmente todos
os Playstations lançados até o final dos tempos terão este jogo.

O centro onde Ingo trabalhava, o departamento de botânica do Instituto Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH Zürich) (é uma universidade) (o Einstein foi professor de física teórica lá, para vocês terem uma idéia), pertence ao governo suíço, mas a verba para a realização de projetos tinha que vir de fora, o que o levou a caçar investidores. Não foi fácil.

O problema não era, como muitos possam imaginar, que ninguém quisesse dar dinheiro para salvar a humanidade. Se parar para pensar, era do interesse de diversos governos financiar um projeto desses (o governo indiano, por exemplo, ajudou com o estudo dos Dattas). O problema era que mesmo com a descoberta dos Dattas, a perspectiva de enriquecer o arroz com betacaroteno parecia muito improvável, o que levava financiadores em potencial a temer investir em algo que provavelmente não ia dar resultado.

Mas Ingo estava realmente determinado. Após tentar alguns lugares, foi até a Fundação Rockfeller, uma instituição filantrópica fundada em 1913 e que até hoje financia diversos projetos e estudos científicos de caráter humanitário, e conseguiu o financiamento que precisava. Não porque ele tenha convencido o conselho científico da viabilidade do projeto, mas porque o problema da falta de vitamina A era considerado algo tão importante que a Fundação resolveu apostar no projeto, mesmo duvidando que algum resultado fosse alcançado.

Ao mesmo tempo que buscava investidores, Ingo organizava uma equipe para trabalhar no projeto. Nesse período, conheceu Peter Beyer, um biólogo professor na Universidade de Freiburg, na Alemanha (curiosidade: essa universidade foi fundada em 1457, criando um contraponto interessante com uma loja de bolos que tem aqui perto de casa e tem escrito na placa “desde 2013”), e nele encontrou um companheiro de aventuras para ajudar o projeto não apenas com o seu intelecto, mas com um segundo centro de pesquisas para trabalhar junto.

Agora que Ingo tem o embasamento científico, o dinheiro, a equipe e um parceiro, está tudo pronto para o arroz enriquecido com betacaroteno ser criado. Se isto fosse um filme, provavelmente começaria uma montagem, com os cientistas trabalhando, se frustrando, varando a noite, discutindo e apontando para fórmulas estranhas numa lousa, trabalhando mais, até vir uma cena onde alguém tem um insight e descobre uma solução inovadora e espetacular, seguido de high-fives e abraços, um deles com o interesse romântico do autor(a) da descoberta, seguido de um beijo espetacular com a câmera girando em volta do casal, provavelmente na chuva. Porque estaria chovendo no laboratório eu não faço idéia, mas Hollywood.

Não sei como aconteceu na vida real (eu não estava lá), imagino que não tenha sido tão mágico assim (sério, não acho que chova dentro de um laboratório, a não ser que seja um estudo para ver as conseqüências de uma chuva artificial na produtividade de um laboratório), mas houve um “momento insight” no projeto quando Peter Burkhardt (não encontrei links específicos para ele), um cientista que entrou no projeto para tirar seu PhD, encontrou um meio de inserir nutrientes no arroz sem alterar o desenvolvimento da planta. Era um grande avanço rumo ao objetivo final, pois isso provou que era possível criar o arroz com betacaroteno sem ter que reinventar as plantações de arroz, permitindo que até mesmo o mais humilde dos agricultores de arroz cultivasse a nova planta.

Mas não foi uma descoberta da noite para o dia, como alguns de vocês possam estar imaginando. Só para contextualizar um pouco: o estudo dos Dattas foi publicado em 1990, Ingo conseguiu fundos com a Fundação Rockfeller em 1992 e a descoberta de Burkhardt foi em 1997. Oito anos entre um passo científico e outro.

Ciência. É difícil.

Após essa descoberta, o trabalho acelerou, e após dois anos (1999) aperfeiçoando e acrescentando ao trabalho de Burkhardt (e tendo mais alguns insights hollywoodianos no caminho), o time conseguiu apresentar a primeira versão do arroz dourado. Bem, dourado é um certo exagero, vamos chamar de arroz amareladinho. E, assim como a cor, a quantidade de betacaroteno nele não era grande o bastante para suprir as necessidades de alguém que só tivesse o arroz como fonte de vitamina A.

Mas, como já dizia o ditado que eu acabei de inventar: “depois que você faz a primeira, as seguintes são mais fáceis”. Na segunda geração do arroz dourado os níveis de betacaroteno eram suficientes para suprir a necessidade de um adulto, e eles vieram melhorando esses níveis a cada geração.

Imagem tirada do site oficial do projeto do arroz dourado.

E como só o betacaroteno não era o bastante, uma das cientistas do projeto, Paola Lucca, encontrou uma maneira de enriquecer o arroz com ferro, melhorando ainda mais o potencial nutritivo dele.

Ciência. É o máximo. E o arroz dourado também.

Aí alguém vem e pergunta:

– Se o arroz dourado é uma coisa tão boa, por que não ouço falar mais dele? Por que ainda temos problemas de falta de vitamina A no mundo?

Muito bem.

É complicado.

[Respira fundo]

Vamos lá.

A épica epopéia de uma descoberta científica, o arroz dourado parte III: A revelação


Se você não pegou a referência, não se preocupe que estes filmes vão ser
lançados em todos os formatos de mídia possíveis imagináveis pelo resto da história.

O arroz dourado ainda não foi implementado no combate à falta de vitamina A por causa de um dos dois últimos obstáculos enfrentados por ele. Mas, para podermos entendê-los, temos que falar sobre o elefante na sala: como foi que Ingo, os Dattas, Peter, o outro Peter, Paola e todos os demais cientistas envolvidos nas diversas fases do projeto conseguiram enriquecer o arroz? Qual foi o método utilizado? Como a ciência conseguiu fazer essa maravilha? Por que eu continuo fazendo essas perguntas sendo que vocês já sabem a resposta?

Engenharia genética.

O arroz dourado é um alimento transgênico.

Não contei de cara para evitar muitos pré-conceitos sobre ele antes mesmo de eu ter começado a história. Mil desculpas se ofendi alguém no processo, mas às vezes um escritor (hahaha, escritor, você? Hahaha) quer esconder o jogo, até para prender o leitor.

De qualquer maneira, voltando para o fato do arroz dourado ser um transgênico.

Se saber isso mudou sua opinião sobre o arroz, sobre o trabalho de todos esses cientistas, sobre as motivações deles, sobre a Fundação Rockfeller e as universidades envolvidas, fazendo com que você seja contra o arroz dourado, peço por favor que você respire fundo e me permita terminar de falar sobre isso antes de você ir me xingar muito nos comentários.

Agora, se esse fato potencialmente mudou um pouquinho a sua opinião sobre alimentos transgênicos, ou pelo menos te faz refletir sobre sua posição quanto ao assunto, eu fico muito feliz e espero que você continue lendo para eu poder aprofundar o tópico.

E, se você é pró-transgênico, espero que o resto deste post seja pelo menos uma leitura interessante.

Muito bem, por onde começar?

Acho bom preencher as lacunas deixadas na história. Primeiro, sobre os Dattas: a descoberta deles? O primeiro arroz transgênico. Antes deles, não sabia-se como trabalhar os genes do arroz com bons resultados. Depois deles, criaram os arrozes transgênicos básicos, por se assim dizer: resistentes contra insetos, pesticidas, etc.

Segundo: a importância de Peter Beyer no projeto. Não citei ele apenas por ele ter se tornado o companheiro de aventuras de Ingo - seu trabalho prévio estudando os genes do narciso, ou melhor, das espécies do gênero Narcissus, foi crucial para a obtenção do arroz dourado, pois um dos genes utilizados na sua criação veio do Narcissus pseudonarcissus.

Terceiro: o ponto de virada de Peter Burkhardt. Agora é a hora que eu provavelmente vou falar bobagem, mas foi isso o que eu entendi que ele descobriu: uma maneira de “despertar” alguns dos genes que cuidam da produção de betacaroteno e que já existem no arroz sem prejudicar o crescimento da planta.

Quarto: os dois anos “aperfeiçoando e acrescentando ao trabalho de Burkhardt” envolveram a segunda parte do problema que ele resolveu. Pelo que eu entendi, ele fez com que o arroz continuasse saudável após “cutucar” um gene, mas para o arroz produzir o betacaroteno direito, era preciso “cutucar” dois. Sim, antes que alguém pergunte: só são modificados dois genes do arroz para ele virar o arroz dourado, e isto é considerado surpreendentemente pouco no meio científico especializado, pelo que eu pude entender.

Quinto: o trabalho de Paola Lucca. Novamente, estou reportando a partir do que eu consegui compreender: o arroz já possui uma quantidade de ferro, mas é ridiculamente baixa e um químico naturalmente presente no arroz atrapalha a absorção de ferro pelo organismo, então a solução foi um combo: aumentar a quantidade de ferro retida no grão e diminuir a ação desse químico. Esta intervenção para enriquecer o arroz com ferro não foi tão eficiente quanto a do betacaroteno: três genes precisaram ser modificados (estou sendo sarcástico - três ainda é considerado pouco).

Acho que isso cobre os principais buracos da história. Imagino que um engenheiro genético leia minha descrição dos fatos e fique com vontade de me dar um tabefe, dada a minha ignorância no assunto, então vou deixar aqui o link para a versão da história narrada por Ingo, que é bem mais aprofundada na ciência utilizada (mas leia depois de ler o meu post inteiro, senão você vai perceber que 60% do meu texto é eu recontando o que ele conta no dele).

Mas como eu não me contento em deixar as coisas por aqui, vou dar uma explicaçãozinha rápida de como eles fazem o arroz produzir o betacaroteno: o arroz, na verdade, já possui o “maquinário” para produzir betacaroteno. Só que ele fica desligado no grão e é tremendamente ineficiente. Na folha do arroz ele é ativo, tem betacaroteno nela, mas é numa quantidade bem ínfima. E a gente come o grão do arroz, não a folha. A solução é introduzir um gene para ligar a “fábrica” e outro para melhorar a produção. Produto final: arroz betacarotenado!

Foi isso que eu entendi. Sério, vou ficar repetindo isso de “o que eu entendi” até o final deste post, porque é isso que eu estou repassando, mil desculpas engenheiro genético que está com o estômago virado de ler minhas explicações. Aliás, senhor engenheiro genético, obrigado por visitar o meu blog! Indique para seus amigos!

Voltando.

Vamos falar agora sobre testes, porque testaram o arroz dourado pra tudo e mais um pouco.

Reações alérgicas? Testado. Resultado: nenhuma.

Problemas no sistema digestivo de quem consome? Testado. Resultado: nenhum.

Alterações no desenvolvimento e crescimento da planta? Testado durante o desenvolvimento do projeto, como já relatei. Resultado: nenhuma.

Impacto negativo no meio ambiente? Testado. Resultado: nenhum (este teste foi feito com arrozes transgênicos em geral, não com o dourado especificamente, mas como ele focava em acompanhar a dispersão dos genes modificados nas plantas nativas, o resultado também vale para o arroz dourado - até onde eu entendi, mas eu vou acreditar nos engenheiros genéticos envolvidos nesse estudo).

Gosto? Testado. Resultado: não foi notada diferença em relação ao arroz normal.

Resumindo: o arroz dourado é seguro não só para o consumo humano como para o meio ambiente. Com isso, só nos sobra o último teste:

Melhoria na quantidade de vitamina A absorvida pelo organismo humano? Testado. Resultado: SIM.

(OBS.: Vocês vão reparar que o estudo linkado no problemas digestivos e no melhoria na absorção de vitamina A é o mesmo porque ele avaliou as duas coisas.)

Antes de continuar, gostaria só de deixar aqui esta informação: alimentos transgênicos são o tipo de alimento mais testado que existe antes de ser aprovado para consumo. Então acreditem em mim quando eu falo isto: se um transgênico chegou no nosso prato, é porque ele foi testado, analisado, testado mais uma vez e retestado de novo até não sobrar nenhuma dúvida quanto à sua segurança. Pode comer e ser feliz.

Assim podemos voltar para os dois últimos problemas enfrentados pelo arroz dourado, e ambos envolvem o fato dele ser transgênico.

A épica epopéia de uma descoberta científica, o arroz dourado parte IV: O resgate


Se você já está de saco cheio desta piada, eu também estou.
Tó uma montagem genérica sem nenhuma referência.

O terceiro problema enfrentado pelo arroz dourado é uma das palavras mais malditas do capitalismo moderno: patentes.

Durante todo o processo de obtenção do arroz dourado, os cientistas tiveram que se utilizar de métodos de manipulação genética desenvolvidos por diversos laboratórios, universidades e empresas. Como era de se esperar, a maior parte deles tinha sido patenteado.

No total, o projeto do arroz dourado utilizou 70 patentes de 32 empresas e universidades diferentes.

Ou seja, para poder levar o arroz dourado para o consumidor, era preciso pagar os royalties dessas 70 patentes, mesmo que esse consumidor fosse só um fazendeiro de subsistência no sudeste asiático.

Para piorar a situação, eis que aparece a União Européia.

Lembram quando eu disse que a Fundação Rockfeller foi quem financiou o projeto? Então, ela ajudou pra burro e sem ela nada teria acontecido, mas pelo que eu entendi, Ingo e sua equipe não estavam assim, nadando na grana. E em algum momento (não sei quando, nem sei exatamente porquê) entrou um pouco de dinheiro da UE no projeto.

Acontece que uma das cláusulas ligadas à participação da UE dizia que os parceiros privados dela teriam direitos sobre os resultados dos projetos por ela financiados. Ou seja, se algum dos parceiros da UE não quisesse que o arroz dourado fosse distribuído de graça, e quisesse cobrar os olhos da cara por ele, Ingo e Peter não teriam escolha a não ser aceitar, destruindo todo o propósito do projeto. Acho que nem mesmo um fã do livre mercado e do capitalismo consegue defender o absurdo de empresas privadas terem direitos sobre projetos científicos financiados com dinheiro público. Não sei se ainda é assim por lá, ou se é assim no mundo inteiro, mas que é o fim da picada, é.

Assim chegamos àquele que parece ser o maior obstáculo do arroz dourado: o capitalismo.

Entra em cena então a Zeneca (que hoje se chama Syngenta), um dos parceiros da UE envolvidos no projeto. Antes que alguém pergunte, sim, ela trabalhava, e ainda trabalha, com transgênicos. E também com agrotóxicos. Sim, parece ser uma empresa má, fria, cruel e capitalista.

Tanto que ela interferiu a favor dos criadores do arroz dourado, deixou eles ficarem com a patente no nome deles e ainda ajudou a resolver diversas pendências legais com as patentes, reduzindo-as de 70 para 12 (pelo menos para os países de terceiro mundo que mais precisam do arroz - patente é uma coisa de país para país e é uma confusão danada) e assim permitindo que o projeto pudesse ir pra frente. Além disso, ela se dispôs a ajudar com a parte administrativa do projeto de graça.

– Ah, mas com certeza eles devem estar levando alguma vantagem nessa história! – Berra algum desconfiado.

Sim, a Zeneca/Syngenta ficou com o direito de comercializar o arroz dourado, pelo que eu entendi.

– Ahá! Sabia que eles não valiam nada! – Berra novamente o desconfiado.

Sim, ela vai vender o arroz dourado, mas com uma condição: que agricultores de subsistência cuja a renda provinda do arroz não passe de US$10.000,00 por ano recebam sementes de graça. Esse limite engloba aproximadamente 99% da população dos países-alvo do projeto.

Ou seja, a Zeneca/Syngenta não vai fazer dinheiro com o arroz dourado nos locais onde ele é mais necessário.

Como se não bastasse isso, sabem as outras doze patentes? Os donos delas concordaram em deixar o projeto usá-las de graça nos países de terceiro mundo.

Inclusive a Monsanto.

Quando houve uma matéria sobre o projeto na revista Time, em 2000, a Monsanto entrou em contato com a equipe do projeto e ofereceu suas patentes de graça. Para qualquer lugar do mundo.

Eu quero que todos vocês, que provavelmente têm uma imagem negativa da Monsanto, que ouvem pessoas falando horrores da Monsanto, que vêem essas pichações escrito “Monsanto mata” pela cidade, lembrem-se sempre disso: a Monsanto ofereceu de graça todas as patentes envolvidas no arroz dourado. Ela renunciou todo e qualquer lucro que ela pudesse receber desse projeto. A Monsanto que você ouve falar por aí faria uma coisa dessas?

E antes que alguém venha falar que eles só estão interessados na publicidade positiva que viria disso (estou olhando pra você, desconfiado escandaloso), quero ressaltar que eu nunca vi, em lugar algum, a Monsanto alardeando este fato. E eu entro em sites de ciência pró-transgênico direto - e nunca vi ela falando nada sobre isso. Aliás, aqui está um trecho de um dos meus podcasts favoritos, o Skeptics' Guide to the Universe, discutindo mitos relacionados à Monsanto.

Sem contar que, se a vida miserável de milhares de pessoas miseráveis em lugares miseráveis melhora substancialmente no processo, dane-se que o objetivo final seja publicidade. Vai ajudar a humanidade? Tó todos os holofotes do mundo.

Aliás, a Monsanto não foi a única, a Bayer, a Novartis e a Japan Tobbaco (atual dona da Camel) também liberaram suas patentes. Não sei se no mundo inteiro, mas só queria mostrar que até uma empresa de tabaco liberou patente para o projeto.

E, só pra pôr uma cereja em cima, o arroz dourado é facilmente replantável, permitindo os agricultores de usar as sobras da colheita na próxima. Só quero ressaltar isso pois um dos grandes argumentos contra transgênicos é que eles criam uma dependência dos agricultores com as empresas que fornecem as sementes (o que não faz o menor sentido, os agricultores são livres para comprar a semente que bem entenderem ou guardar as sobras para a próxima colheita, eles que escolham a melhor opção, livre mercado e coisa e tal - mas vamos deixar essa discussão para outro dia), mas o arroz dourado não possui este problema. Que ele é replantável. E grátis. GÁ-RÁ-TCHÍS.

Resumindo: o arroz dourado venceu o capitalismo selvagem.

Seu potencial humanitário é tão grande que gigantes multinacionais concordaram em não receber nada da venda dele.

Eu não sei quanto a vocês, mas essa é a parte que mais me impressiona em toda a história do projeto.

Quero dizer, a parte que mais me impressiona positivamente.

Que agora vem a parte que mais me impressiona negativamente.

A épica epopéia de uma descoberta científica, o arroz dourado parte V: A batalha final


Referência: Adventure Time. Mais fácil e rápido assim.

O quarto obstáculo do arroz dourado. O obstáculo que não foi superado ainda, e que há mais de dez anos tem impedido ele de ser introduzido na maior parte dos países que mais se beneficiariam dele.

O medo.

O medo que as pessoas sentem quando ouvem a palavra transgênico.

Por incrível que pareça, o arroz dourado ainda não foi implementado em diversos países por causa do movimento anti-GMO (genetically modified organism, ou organismo modificado geneticamente) e suas campanhas, que espalham medo na população, fazendo a opinião pública ficar contra os alimentos transgênicos e, conseqüentemente, afetando as decisões políticas em torno do assunto.

Traduzindo: diversos países escolheram deixar crianças ficarem cegas ou mesmo parte da população passar fome do que aceitar alimentos transgênicos, mesmo depois deles terem sido extensivamente testados e confirmados como seguros para o consumo humano e o meio ambiente.

Eu, sinceramente, acho isso muito problemático.

Espero que vocês também.

Porque conhecer o arroz dourado foi um dos fatores que me fez mudar de posição quanto aos alimentos transgênicos.

Hora da historinha


Eu também tinha medo de transgênicos, eu também fiquei assustado quando ouvi pela primeira vez sobre mexer nos genes de plantas para criar novas e eu também era contra deixarmos um monte de cientistas loucos financiados por empresas gananciosas decidirem o que vamos ou não comer.

E, só pra constar, eu estou sendo bem sincero agora, não pensem que isto é uma daquelas estratégias de contar a história de como mudei de ponto de vista político só pra ganhar votos que assolaram o facebook na última eleição. Até porque, se for pra levar em conta o alcance do meu blog, eu tenho também plena consciência que não vou fazer a menor diferença estatística no mundo. Mas é que eu realmente queria escrever sobre tudo isso.

Vamos do começo. Acho que foi na sexta série, em 1996, o meu primeiro contato com o conceito de alimentos transgênicos, ou pelo menos é o que eu lembro. Era tema de um trabalho na escola, e tínhamos que elaborar uma apresentação sobre o lado bom e o lado ruim dos transgênicos.

Não me lembro muito claramente de como foi a apresentação, ou a nota que tiramos, ou sequer quais foram os principais argumentos usados à favor dos transgênicos (forçando os neurônios aqui, acho que falamos sobre melhorar a produção agrícola, mas é bem capaz do meu cérebro estar misturando diferentes memórias). Mas eu me lembro muito bem dos argumentos contra. Ou melhor, me lembro de três dos argumentos contra, que é bem capaz de ter tido mais:

O primeiro era uma questão girando em torno do “tomate com gene de peixe” e o que isso representaria para pessoas vegetarianas, se não era um jeito de impôr carne para elas, ou se não era antiético enganar elas desse jeito. Tinha até uma garota da classe que martelou forte essa idéia, provavelmente ela era vegetariana. Mas e o que o “pequeno” Vitor (ente aspas que eu já era gordo na época) pensava sobre isso? Quanto aos vegetarianos, eu pensava “quem mandou ser idiota de não comer carne?” (eu não era um pré-adolescente muito compreensivo), mas a imagem do tomate com o gene do peixe ficou na minha cabeça, principalmente porque na época eu ainda não gostava de sashimi (eu sou uma vergonha como descendente de japonês) e ficava pensando em sashimi com tomate e ficava meio enjoado. Que, sério, eca.

Eca.

O segundo argumento que eu me lembro tinha a ver com o meio ambiente, de como as plantas transgênicas iam cruzar com as plantas nativas e destruir tudo. Ponto. Era esse o argumento. Olhando em retrospecto, essa é uma argumentação bem rasa, mas ia esperar o quê de um trabalho de sexta série? Mesmo assim, este foi um dos argumentos mais marcantes para mim, pois eu tinha um lado meio ecologicozinho na época, de achar que proteger a natureza é o mais importante (o Capitão Planeta provavelmente contribuiu muito pra isso). Não que eu tenha deixado de acreditar em proteger a natureza, ainda me considero uma pessoa eco-friendly, mas eu acabei criando um desgosto com certas atitudes tidas como ecológicas mas que não possuem muito embasamento científico - como a própria postura anti-transgênico. Digamos assim: agora sou um ecologista com embasamento científico e suporte analítico de internet (tô me achando muito aqui, fala a verdade), ou seja, apóio idéias que protejam o meio ambiente que tenham sido corroborada pela ciência e por dados, mas meu apoio se restringe a divulgar informações e dar likes na internet, se for pra levantar a bunda e fazer algo mais significativo, fico com preguiça.

Eu falei que ia ser sincero, não falei?

De qualquer maneira, essa noção de que os transgênicos iam destruir o meio ambiente era o meu principal argumento contra eles quando eu tinha doze anos e continuou sendo por muito tempo, até alguns anos atrás. Mas estou me adiantando demais, ainda falta um argumento do meu trabalho escolar.

O terceiro argumento, pelo que eu me lembro, envolvia mudanças genéticas nos humanos. O que eu não consigo lembrar agora é se argumentamos que os alimentos transgênicos iriam afetar os genes das pessoas ou se as hortaliças transgênicas eram só o primeiro passo, que depois íamos estar experimentando em animais e depois em humanos criando doenças e problemas genéticos horríveis. Vou ser sincero mais uma vez: me lembro claramente de ter pensado algo como “então vamos criar os X-Men?” e ter achado isso muito legal. Mas eu tinha uma certa vergonha de compartilhar essa idéia, então não comentei nada sobre termos mutantes que nem o Wolverine ou a Jean Grey (achei que criar uma Tempestade era exagero, até para a minha imaginação da época). Fala sério, se desse pra fazer isso ia ter um monte de gente invadindo plantação de transgênicos e injetando eles direto na veia na esperança de ganhar super-poderes.

Enfim, esse trabalho foi o meu primeiro contato com transgênicos e o único por muito tempo. Sempre que surgia alguma conversa sobre o assunto, eu ia para o argumento do “o cruzamento de plantas transgênicas com plantas naturais é prejudicial ao meio ambiente”, os outros dois eu meio que ignorava.

Só que houve mais um argumento contra transgênicos adicionado para a minha lista, o argumento Monsanto.

Vocês já sabem do que eu estou falando, e até já falei um pouco disso. Mas ele foi um argumento que influenciou a minha visão de transgênicos de maneiras diferentes, então acho importante falar dele aqui.

A questão é que o argumento Monsanto tem diversas variantes, ou melhor, existem várias narrativas de como a Monsanto e as demais grandes empresas de transgênicos só querem ferrar com a nossa alimentação por causa do lucro.

A versão que eu mais me lembro de ter ouvido durante o colegial e a faculdade envolvia a Monsanto, as empresas de agrotóxicos e a indústria farmacêutica todas trabalharem juntas para criar transgênicos resistentes a pesticidas, permitindo seu uso excessivo nas plantações e, com isso, causar diversas doenças na população, que precisaria de remédios para se curar. Acho que os transgênicos também causavam algumas doenças, se não me engano. Os detalhes dessa história variavam de acordo com o dia da semana.

Sério, escrever este último parágrafo levou uns vinte minutos de tanto que eu tive que parar para fazer facepalms. Só faltou a maçonaria e os Illuminati nessa história. Mas acho que fazer um colegial de humanas e uma faculdade de comunicação (cinema, ainda por cima) me deixou em contato com uma juventude anti-capitalismo bem extrema, beirando teóricos da conspiração. E, se eu for sincero, eu também acreditava em algumas dessas teorias sobre grandes conspirações governamentais e organizações secretas capitalistas que manipulavam a população alienada (mas é claro que eu não era manipulado, eu era o grande bastião da esperança, aquele que enxergava o mundo como ele realmente é e ia mudá-lo para melhor). Até eu acreditei por um tempo que foi o próprio governo Bush que orquestrou o onze de setembro - mas daí chegou outubro e eu percebi que era tontice acreditar nisso.

Tendo dito tudo isto, a idéia de que a Monsanto era inescrupulosa e agia de maneira antiética ficou num canto da minha mente. Eu não acreditava na versão “teoria da conspiração Illuminati” mas tinha essa impressão geral de que ela era uma das empresas “do mal”, o que quer que isto signifique. Olhando em retrospecto, foi uma grande preguiça intelectual da minha parte simplesmente classificar ela como “do mal”, mas enfim.

Foi então que, alguns anos atrás, começou a coisa toda dos alimentos orgânicos.

E essa história me encheu de raiva, e pelo motivo mais tonto possível: semântica.

“Tudo o que a gente come é orgânico! Que separação estúpida é essa? Tem gente por aí comendo fruta de cera ou carne de plástico? Qual o significado da palavra? Coisas que vêm de seres vivos! Que se decompõe naturalmente! Adivinha o que entra nessa classificação? TUDO QUE A GENTE COME, PORRA!” – Eu berrava a plenos pulmões dentro da minha cabeça.

Querendo entender mais sobre essa palhaçada de deturpar a língua portuguesa, comecei a pesquisar pela internet por informações acerca de alimentos orgânicos, o que acabou me pondo novamente em contato com a discussão em torno dos transgênicos. E, como era de se esperar, achei diversos sites propagandeando alimentação orgânica e condenando alimentos transgênicos.

Só que, para minha grande surpresa, encontrei vários sites defendendo os transgênicos. Eu sinceramente tinha a impressão que transgênico era uma coisa que nem o nazismo: só pessoas com sérios problemas psicológicos defenderiam essa idéia. Mas muitos dos sites que eu achei eram de pessoas claramente sãs e inteligentes, e que haviam decidido defender os transgênicos online por algum motivo.

Obviamente, fiquei em dúvida sobre o que era verdade nessa história toda, mas enquanto eu lia sobre os dois lados, eu percebi uma coisa: o lado anti-transgênico estava repetindo os mesmos argumentos que eu tinha usado no meu trabalho de escola na sexta série. Ainda estavam contestando o tomate com gene de peixe, o cruzamento das plantas transgênicas com as nativas, a alteração genética que eles trariam para os humanos e, obviamente, a ganância capitalista de Monsanto e companhia.

Isso me deixou muito encucado. Se essas questões foram levantadas mais de dez anos atrás, por que ninguém foi tentar respondê-las, seja o pessoal pró, seja o pessoal contra, seja o pessoal neutro? Principalmente as questões relativas à saúde e ao meio ambiente, por que ninguém quis descobrir o que realmente acontece?

Resposta: nós respondemos essas perguntas. Diversos estudos, meta-estudos e reviews sistemáticos apontavam para a mesma conclusão: transgênicos são seguros para a nossa saúde e para o meio ambiente.

Tinham alguns estudos com resultados diferentes? Claro que tinham, inclusive eram os estudos que todos os sites anti-transgênico que eu lia apontavam.

Mas os sites pró-transgênicos discutiam esses estudos com resultados diferenciados, mostrando as críticas que foram feitas a eles por outros cientistas, assim como estudos similares mas que chegaram a resultados diferentes. E as críticas eram muito válidas, na minha opinião, muitas vezes relacionadas à dosagem, às espécies envolvidas e ao tamanho da amostragem. Foi assim que eu aprendi muito sobre o conceito de consenso científico e método científico, inclusive.

Foi aí que eu resolvi fazer o contrário, buscar nos sites anti-transgênicos as críticas feitas aos diversos estudos que demonstravam que transgênicos eram seguros.

E, para a minha grande decepção, o principal argumento que eu encontrei era que esses estudos foram todos pagos pelas grandes corporações capitalistas gananciosas que só querem lucro, logo não podiam ser considerados, já que dinheiro.

Eu fiquei muito, muito frustrado. Parecia que eu estava de volta na faculdade, onde qualquer coisa era um sinal do capitalismo selvagem destruindo a vida das pessoas. Foi um daqueles momentos que percebi que estava ficando velho, imagino que todo mundo passe por momentos assim, quando compreendemos que parte das nossas idéias quando jovens só faziam sentido porque éramos jovens ainda (jovens ainda, jovens ainda…), e não tínhamos informação o bastante para entender melhor o mundo.

Mas tudo bem, vamos considerar essa crítica como algo válido. Então onde está a prova de que os dados foram manipulados? Quando necessário, a comunidade científica pode pedir acesso aos “dados crus” (raw data em inglês, não sei o correspondente em português) de um estudo justamente para encontrar manipulações e aquilo que chamam de “cherry-picking”, que é quando apenas os dados que comprovam a hipótese buscada pelo pesquisador são considerados e ele ignora qualquer dado que o contrarie. E eu, sinceramente, não vi nada disso nos sites anti-transgênicos.

Tudo o que eu via era basicamente os mesmo argumentos do meu trabalho de 1996 mais as teorias da conspiração de manipulação capitalista. Além de uma dose cavalar da falácia naturalista, algo que eu já discuti aqui no blog, quando falei sobre o bom selvagem (não precisam ir ler de novo, o texto não é lá essas coisas…).

Ou seja, estava me parecendo cada vez mais que o pessoal anti-transgênico só queria ser anti-transgênico para ser anti-transgênico, e que eles não se importavam com a ciência envolvida.

Só que, mesmo assim, eu tinha um certo receio.

O receio de que talvez eu estivesse caindo na conversa da “indústria do transgênico”, e que eu estava sendo manipulado.

Porque eu ainda tinha essa vozinha do estudante de cinema na minha cabeça falando que as pessoas fazem qualquer coisa por lucro, que esse papo de revolução transgênica era só para agradar investidor e não era algo importante cientificamente falando, e que era possível que a indústria do transgênico tivesse tanto, mas tanto dinheiro que eles conseguiam pagar cientistas, fazendeiros e até governos para esconder a verdade.

E aí eu achei o arroz dourado.

E todas as minhas dúvidas foram embora.

Porque tínhamos aí um alimento transgênico criado para ajudar milhares de pessoas, com embasamento e respaldo científico, apoiado por diversas organizações humanitárias importantes e que a indústria do transgênico aceitou dar de graça para o mundo.

Agora eu sou pró-transgênico.

Vestindo a camisa.

Eu sinceramente não sei explicar porque esse arroz pesou tanto para eu me firmar na minha posição. Talvez pela história dele, da dedicação e do tempo que foi necessário para criá-lo. Talvez pelo potencial dele de evitar que milhares de crianças fiquem cegas. Talvez pelo fato de grandes empresas terem aceitado dá-lo de graça para quem precisa. Talvez porque eu só considere uma refeição completa se tem arroz nela. Provavelmente foi um combo de tudo (mas a coisa das empresas darem as patentes pesou mais).

Mas não é porque eu cheguei nessa posição com o arroz dourado que eu espero que vocês "se convertam" ou coisa parecida. Estou apenas contando a minha história e as conclusões que eu cheguei. Outras pessoas podem chegar a conclusões diferentes.

Tendo dito isto, queria, antes de terminar este já enormantesco post falando sobre algumas dúvidas relacionadas ao arroz dourado e transgênicos em geral (mas não muitas, que já falei demais).

Algumas respostas para algumas perguntas


Existem pessoas contra o arroz dourado? Claro que existem. O Greenpeace, por exemplo. O principal argumento deles (pelo que eu percebi) é que, ao invés de termos gasto todo esse dinheiro fazendo um arroz transgênico, era melhor ter investido ele em programas sociais para melhorar a vida da população miserável. Eu, pessoalmente, discordo dessa posição, pois acredito que desenvolver uma maneira de melhorar a alimentação de uma população já é um tipo de investimento social, pois, na minha cabeça, pessoas saudáveis são o primeiro passo de uma melhoria social.

Eles também apresentam outros argumentos, mas alguns deles, para minha grande frustração, são baseados em inverdades, como falar que não há nenhum estudo comprovando a segurança do consumo de transgênicos. Eu vou deixar aqui um artigo-resposta que eu achei sobre a posição do Greenpeace na questão, espero que isso ajude vocês a refletir sobre a questão.

Temos 100% de certeza absoluta que ele vai acabar com o falta de vitamina A no mundo? Não, não temos esse nível de certeza, pode muito bem acontecer do arroz dourado não ser bem aceito pela população local e termos que pensar outras soluções. Mas só vai dar pra saber tentando. Essa solução já está pronta, é só distribuí-la para ver se teremos um resultado positivo ou não. Ficar com ela na gaveta enquanto crianças morrem é uma questão ética complicada, na minha opinião.

A indústria do transgênico é, então, perfeita, já que o consenso científico é pró-transgênico? Claro que não. É muito importante continuarmos fiscalizando e observando suas ações, em momento algum eu disse que era para darmos de mão beijada toda a nossa alimentação, confiando cegamente na indústria do transgênico. Mas também não é para ficarmos tão contra ela que impedimos alimentos transgênicos que podem ajudar causas humanitárias de serem distribuídos e consumidos. Até porque, como já contei aqui, a própria indústria desistiu de boa parte dos seus lucros para ajudar a causa.

Acho importante também levantar uma coisa sobre a discussão relacionada à transgênicos: boa parte das críticas que leio por aí (além daquelas que eu usei na sexta série) envolvem mais problemas inerentes à agricultura predatória e à monocultura do que aos transgênicos. São coisas separadas, a meu ver. Monoculturas são prejudiciais sim ao meio ambiente e questões éticas e trabalhistas vindas da exploração de fazendeiros são um problema sim, mas eles não são decorrência da engenharia genética. Eu acredito piamente que, mesmo que não tivéssemos desenvolvido transgênicos, a indústria agrícola iria explorar tanto o solo quanto seus trabalhadores para conseguir mais lucro. O importante aqui, para mim, é mais fiscalizar as condições de trabalho dos fazendeiros e incentivar plantações de policultura, e não condenar a engenharia genética. Até porque alguns transgênicos melhoraram a vida de algumas comunidades rurais e estão sendo desenvolvidos transgênicos com o potencial de desgastar menos o solo.

Conclusão


Tecnologia é aquilo que fazemos dela, e fizemos uma coisa maravilhosa com transgênicos: um arroz colorido que pode salvar milhares de vidas.

Mas que nós não usamos. Porque ainda temos um medo irracional criado há mais de dez anos. Um medo que, se todos nós nos informássemos um pouco mais, veríamos que já sabemos o bastante para deixá-lo para trás.

Faz muito tempo que eu queria escrever este texto, mas sempre foi muito difícil, tanto porque eu não sou um cientista de formação quanto por achar que eu não tinha nada a acrescentar à conversa. E, no fundo, tinha também o pensamento de que dane-se, eventualmente a ciência vence.

Porém a discussão em torno dos transgênicos voltou à tona com a câmara acabando com a obrigatoriedade de avisar na embalagem que um alimento é transgênico (assunto, aliás, que é outro vespeiro à parte, talvez fale dele outro dia). E eu vi muita gente, mas muita gente, gente que eu conheço e sei que é inteligente e esclarecida, e mesmo gente que não conheço mas admiro e respeito usando os mesmos argumentos que eu tinha na sexta série sobre transgênicos.

Daí eu tive que escrever este texto.

Não espero nem quero que vocês aceitem de cara que transgênicos são uma coisa boa. Eu mesmo demorei para chegar à minha posição. O que eu espero e quero é que vocês pelo menos reflitam e pesquisem mais sobre o assunto, especialmente se sua opinião foi formada há mais de dez anos.

Mas se resolvam logo, que a gente tem que distribuir o arroz dourado o quanto antes.

Obrigado.