segunda-feira, 5 de março de 2012

Pau no cu do “Bom Selvagem”

Hoje o assunto é algo que me enche de raiva.

Sabem essa coisa que muita gente tem de achar que uma coisa é melhor só porque ela é “natural”?

Então.

Odeio isso.

Muito. Muito, muito mesmo. Fico com um certo mal-estar na região do estômago seguido de um arrepio nas costas e um princípio de tontura de tanta raiva. Daí eu tomo meu remédio.

Daí eu fico calminho, calminho...

Mas porque me irritar tanto com isso?

Existem três motivos.

O primeiro é muito simples: nada do que consumimos hoje em dia é livre do que podemos chamar de “contato humano”. Qualquer coisa que chega até você passou, em algum momento, por alguma interferência humana. Tudo. Da água tratada que sai da sua torneira até o creme hidratante de aloe vera escrito “100% natural” que você passa nas axilas toda manhã.

É até possível argumentar que a agricultura é uma intervenção humana na natureza, fazendo com que sua plantaçãozinha de hortaliças na área de serviço também seja “não-natural”, assim como os tomates “orgânicos” plantados numa fazendinha em Mairiporã e transportados de caminhão até o mercado.

Resumindo: a não ser que você esteja acessando este blog de uma aldeia que vive de caça e coleta, você não está fazendo nada de um modo mais “natural”. Aliás, só de acessar este blog você já não é mais tão natural assim.

Ou será que é?

Aqui entra o segundo motivo que me irrita com essa bosta toda: de certo modo, TUDO é natural.

Concreto? Natural. Penicilina? Natural. Chips de computador? Batata frita do McDonalds? Tetas de silicone? Tudo natural. No sentido de “da natureza”.

E o que faz isso tudo ser natural? A Seleção Natural.

A Seleção Natural é, digamos, a ferramenta que a natureza tem para determinar quais espécies sobrevivem, passando seus genes para frente, certo?

Acontece que, em algum momento da história do nosso planeta, a Seleção Natural selecionou (sim, eu sei, mas não consegui construir a frase de nenhum outro jeito) essa espécie de hominídeo como apto para sobreviver. Mesmo sem garras, presas, veneno ou qualquer outra vantagem. Só um teleencéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor.

Isso permitiu que essa espécie construísse coisas. Ferramentas. Armas. Roupas. E assim conseguisse se adaptar aos mais diversos ambientes.

E as coisas que essa espécie criou e construiu foram evoluindo com o tempo, melhorando, nos tornando ainda mais aptos a sobreviver neste planeta.

Ou seja, a Seleção Natural determinou que uma espécie capaz de construir e desenvolver ferramentas se tornasse o topo da cadeia alimentar e, basicamente, dominasse o mundo. Toda e qualquer criação humana faz parte da natureza, pois é um meio de nós nos adaptarmos e sobrevivermos.

Deu pra entender? De um ponto de vista evolutivo, o tomate transgênico, o tomate cultivado com agrotóxicos e o tomate orgânico são a mesma coisa: uma ferramenta desenvolvida pelos homo sapiens sapiens para sobreviver.

Logo, TUDO é natural.

TUDO!

E eu gosto muito de brincar com esse conceito, pensar que um espetinho de manteiga empanada é tão natural quanto uma alface é algo muito divertido.


O problema é que isso meio que “quebra” a utilidade da palavra “natural”, gerando um problema semântico.

Então vamos traçar uma linha onde a palavra “natural” separa as criações humanas daquilo que não houve interferência humana, ignorando o ponto de vista evolutivo, para que a semântica e a sociedade civilizada continuem funcionando, e ignorando as interferências de outras espécies no planeta, como represas de castores ou desmatamentos causados por formigas.

E porque a espécie humana é mais especial sim, pois é a nossa espécie.

Assim chegamos ao terceiro e principal motivo para eu ficar irritado com essa merdaiada de “natural”: Só porque uma coisa é “natural”, isso não quer dizer que ela é melhor.

Isso sequer quer dizer que ela é boa.

Sim, caí no básico argumento de que “veneno de cobra é natural”.

Mas é a realidade. Tudo na natureza quer te matar.

TUDO!

Ok, vamos começar de novo.

Só porque alguma coisa não passou por interferência humana não quer dizer que ela é boa. A quantidade de interferência humana não é, sob qualquer ponto de vista minimamente inteligente, um medidor de qualidade.

Uma maçã recém colhida do pé é tão gostosa e (dependendo do tipo e da presença ou não de vermes) tão saudável quanto uma barrinha de ceral sabor maçã. O que pode variar é o gosto de cada um. O fato de ser natural não influencia mais que “efeito placebo”.

Assim como uma bomba atômica pode matar tanto quanto um terremoto (como sou descendente de japonês, posso fazer essa comparação).

Acho que deu pra entender que a natureza pode ser tão mortal quanto o ser humano (descartando, novamente, o ponto de vista evolutivo previamente discutido).

Mas as pessoas ainda assim acreditam que uma coisa natural é melhor. Que a interferência humana piora a qualidade das coisas, não importa quanto mostremos que a expectativa de vida melhorou desde que descemos do galho.

E isso tudo é culpa de uma pessoa.

Desse grandessíssimo filho da puta do “Bom Selvagem”.

Puta que pariu.

Que ódio.

E todos vocês são filhos do Mitsumasa Kido! Porque isso faz sentido!

Antes de continuar, aviso vocês que nunca li Rousseau. Estudei um pouco na faculdade e no colegial, mas nunca me aprofundei. Resolvi pesquisar um pouco mais para escrever com propriedade, e descobri que o conceito de “Bom Selvagem” que me foi ensinado como a base da filosofia Rousseana é errado.


Me ensinaram que o “Bom Selvagem” é o Homem puro, que existiu sem ser corrompido pela sociedade. Algo como “o Homem é inatamente bom, a sociedade/a civilização o corrompe”.

Rousseau realmente acreditava que o Homem era bom por natureza, mas que o que o corrompia não era simplesmente “a sociedade” ou “a civilização”, mas “o orgulho”. Só com isso dá pra sacar que alguém não prestou atenção no livro do cara e saiu falando merda. E devo acrescentar que estou resumindo com minhas próprias palavras. Talvez, algum dia, leia Rousseau com mais calma e dedicação.

O problema é que o conceito errado do “Bom Selvagem” continuou no nosso subconsciente, um tipo de “culpa branca” por ter colonizado a terra desses índios inocentes e peladinhos. E esse "Bom Selvagem", do conceito errado, merece umas palmadas. Com uma daquelas raquetinhas de torrar mosquitos. Nas bolas.

Isso também tem uma forte influência da Bíblia, o Éden mágico e florido com seus animais falantes e folhas de parreira estrategicamente localizadas. Ainda vivemos numa sociedade judaico-cristã, então essa imagem de paraíso ainda é muito forte no nosso inconsciente.

Agora vem a mensagem do blog sobre esse conceito:


Até que demorou pra ter uma imagem com marca d'água neste blog...

Pessoas. Sério. O que vocês acham que criou a sociedade/a civilização? Satanás? Loki? Jesus? Papai Noel? Alguma outra entidade mágica genérica não-existente ligada a algum culto religioso?

NÃO, CARALHO.

Foram os próprios humanos. Foram os índios peladinhos. Há muito tempo atrás, é verdade, mas fomos nós.

E não criamos isso por esporte, ou só pra termos o que fazer entre a caçada da manhã e a bimbada do pôr-do-sol.

A civilização foi criada através de um processo longo e árduo para que nossa espécie sobrevivesse.

E ISSO É IMPORTANTE, PORRA.

Por mais que eu classifique 99% da raça humana como crônicamente estúpida (estou incluso nessa porcentagem), estou muito grato que estejamos vivos hoje. Porque é a minha espécie. Porque é o que eu sou. Um humano. Tonto.

E é por isso que eu fico estarrecido e emputecido com essa coisa de “natural é melhor”, porque para mim soa como “tudo o que permitiu a sobrevivência da nossa espécie é ruim, o que tenta nos matar é bom”. Isso é muito estúpido. Imensuravelmente burro. Georgelucasianamente retardado.

Me dá vontade de pisotear a cabeça de pessoas assim (atenção: spoilers no link).

Mas ainda assim isso perdura. Coisas como o movimento anti-vacina ou pessoas que destroem plantações de transgênicos. É revoltante.

Portanto, se depois de tudo o que eu falei, você ainda acredita piamente que o que é “natural” é melhor, me faça um favor: pare de ler este blog, desligue o computador e vá morrer no meio de uma floresta. Vai lá ver como nós só somos o topo da cadeia alimentar quando usamos o que criamos.

Agora, se este post te fez repensar seus conceitos de “natural”, mas ainda não sabe o que concluir disso tudo, aqui está alguém mais inteligente e influente que eu comentando sobre o “natural”. Ou melhor, vá pensar por si só, vá estudar, ler Rosseau, sei lá.

Só não me negue o que nos permitiu sobreviver.

Um comentário:

  1. Boa!
    Isso me irrita bastante tb, muitas dessas pessoas que criticam tanto a intervenção humana e querem tudo "natural" esquecem que mesmo a maçã ou o milho que eles compram a R$20,00 o kilo na lojinha de comida "orgânica" que fica no meio da área mais "civilizada" da maior cidade da américa do sul (aka Jardins), fertilizada por excremento de vacas (cheias de hormônios) e pessoas sofreu uma enorme intervenção humana.
    As maçãs, milhos, mangas, etc não eram assim naturalmente, gigantes, deliciosas e cheias de frutose, foram selecionadas ao longo de gerações pelos humanos até ficar do jeito que conhecemos atualmente, igual aos cachorros "de raça".
    http://learn.genetics.utah.edu/content/variation/corn/

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