sábado, 13 de abril de 2013

Two milkmen go comedy!


Este vai ser um daqueles raros posts em que eu tento falar bem de alguma coisa.

No caso, de um game: Zero Escape: Virtue’s Last Reward (ZE:VLR).

Cacete, como esse jogo é muito bom pra caralho mesmo plus plus.

Esse jogo é, ó, tchik, tchik! Até fiz cosplay de um dos personagens!

Se você não tem um 3DS, vá comprar um pra jogar esse jogo. Pode ser um Vita também, mas recomendo o 3DS por dois motivos: primeiro, poder jogar o primeiro jogo da série, 999: 9 Hours, 9 Persons, 9 Doors e segundo, ter um console portátil que vale a pena.

Antes de eu continuar babando ovo em cima desse jogo, uma ressalva: você passa uns 80% do jogo lendo.

Basicamente, é um livro com alguns puzzles MUITO BONS no meio.

Mas é uma história boa.

Ok, é uma história boa o bastante. Não vai jogar esperando algo profundo como um Crime e Castigo ou um Cem Anos de Solidão que não é essa a proposta.

Aliás, não sei qual que realmente é a proposta dos criadores do jogo. O que eu sei é o que eu senti da história jogando o jogo: que é um exemplo fantástico do que um game pode fazer com uma narrativa.

Ok, essa afirmação ficou confusa. Mas acho que é o melhor que eu consigo. Quem sabe dá pra entender com a explicação.

Comecemos do princípio: qual a grande diferença entre games e as demais “artes narrativas”?

O nível de interatividade do “consumidor” (aqui significando “consumidor de uma obra artística”) com a obra.

Sim, sim, existem aqueles livros de “faça sua aventura” e aquelas instalações de arte contemporânea onde você só aprecia a arte se esfregar as genitais em esculturas de pedra sabão e também aquelas peças horrorendas de teatro com interação com a platéia, puta merda, como eu odeio isso, devia ter uma lei proibindo essa bosta.

Instalações com interação do público. Arte.

Só que eu vou manipular a semântica da coisa toda e separar os games das demais artes com isto: “um game, para ser um game, pressupõe a interação do jogador, enquanto que nem todo livro é um ‘faça sua aventura’, nem toda instalação é uma narrativa e nem toda peça de teatro interage com a platéia, ainda bem, senão nunca entrava num teatro, nossa, eu realmente odeio essas peças com interação do público, prefiro rolar pelado em cacos de vidro sujos de curry.”

Tendo definido isso, vamos para o próximo passo, que é pensar no que pode fazer a narrativa de um game boa.

Uma das respostas mais comuns e que é a visão que muitos desenvolvedores e muitos  jogadores têm é “liberdade de escolha” associada com “conseqüências condizentes” (nunca vi ninguém usar essas expressões desse jeito, mas é o melhor modo que consegui para resumir a coisa toda).

“Liberdade de escolha” quer dizer, neste contexto, deixar o jogador decidir o que fazer com o personagem para a história acontecer. Se o jogador quer cumprir uma missão ou não, se ele deve matar ou salvar determinados personagens, se ele quer comer donuts ou bagels - enfim, deixar essas decisões nas mãos dos jogadores.

Essa parte, da liberdade, tem sido explorada através da existência de “momentos de escolha” num jogo, onde o jogador tem duas ou mais opções para direcionar a história. A tendência, imagino, é deixar esses momentos mais discretos (sem aparecer uma caixinha de texto onde você literalmente escolhe uma opção ou outra), mais incorporados ao jogo, além de ir aumentando o leque de escolhas, deixando o jogador fazer o que bem entender (mesmo que essas escolhas não façam o menor sentido, já que sempre vai ter um espírito de porco que vai querer fazer algo realmente estúpido).

A questão é que “liberdade de escolha” é inútil sem “conseqüências condizentes”. Traduzindo: do que me adianta tomar uma decisão se o resultado de todas as opções é o mesmo final?

Aí está um grande problema para os desenvolvedores trabalharem, pois não tem como determinar TODA SANTA CONSEQÜÊNCIA dos atos de um personagem. Isso gera um pepinão para os roteiristas de jogos, pois (novamente) sempre vai ter um tonto pra questionar a quantidade limitada de conseqüências para a decisão retardada dele.

Mas enfim, essa é uma das sinas da narrativa em games - como prever e programar as conseqüências das ações dos jogadores.

E toda a história de ZE:VLR gira em torno de suas escolhas e suas conseqüências, só que de uma maneira bem “arcaica”, onde a história caminha até um ponto e então são apresentadas opções e você clica na touchscreen qual opção você quer. Chega ao ponto do personagem resumir as (prováveis) conseqüências da sua escolha pra você pensar bem no que quer fazer.

Até aí, nada muito inovador.

O que me fez alucinar na narrativa de ZE:VLR é que o jogo “brinca” com as suas decisões e suas conseqüências - mudando o que acontece mesmo quando você já sabe o que deveria acontecer.

Atenção: spoilers.

Basicamente, o seu personagem desenvolve, durante o jogo, o poder de “saber” o resultado das suas decisões antes de tomar uma decisão - mas apenas se você já jogou até o final o “universo” onde seu personagem tomou tal decisão. Deu pra entender?

Assim, vamos supor que você podia escolher entre fazer um misto quente ou um misto frio  para o café da manhã. Você resolveu fazer o frio, pois não queria se dar ao trabalho de esquentar o sanduíche. Isso permite você sair um pouco mais cedo de casa, mas, para seu azar dois drogados armados dirigindo um carro a oitenta quilômetros por hora estavam passando na sua rua bem na hora que você sai e metem uma bala na têmpora esquerda e você morre. Vamos chamar este de “Universo Roteiro Real Que Vi Alguém Escrever Na Quanta E Se Você, Autor Dessa Pérola, Estiver Lendo Este Post, Sério, Puta Idéia Lixo” (URRQVAENQESVADPELEPSPIL).

Agora, vamos pensar no que acontece se você escolhe fazer o quente. Você liga a sanduicheira polishop, põe o sanduíche pra esquentar e ela explode na sua cara, e você morre. Vamos chamar este de “Universo Não Estou Com Muito Saco De Bolar Uma Morte Melhor” (UNECMSDBUMM).

Ok, temos os dois universos definidos. Só que, em ZE:VLR existem mais dois universos relacionados à esses dois: o Universo Onde Você Sabe Que Você Vai Ser Baleado Ao Sair De Casa (UOVSQVVSBASDC) e o Universo Onde Você Sabe Que A Sanduicheira Vai Explodir (UOVSQASVE).

Mas você só tem acesso ao UOVSQVVSBASDC se você jogar o URRQVAENQESVADPELEPSPIL, assim como você só tem acesso ao UOVSQASVE se você jogar o UNECMSDBUMM. Não perguntem como você tem acesso à esses diferentes universos se você morre no final deles - faz parte da diegese do jogo e pronto.

Enfim, vamos ao ponto que interessa: como mudar seu destino nos UOVSQs. Vamos ver o primeiro, UOVSQVVSBASDC:

Você sabe que, se sair de casa um pouco mais cedo, por causa do tempo que ganhou não esquentando seu misto, você vai levar um tiro e morrer. Então você toma a decisão mais sensata, que é esquentar o misto. Seu sanduíche esquenta, você come ele DEVAGARZINHO, aproveitando cada mordida e mastigando tudo até só sobrar uma pasta nojenta e sem gosto na sua boca. Aí, antes de sair, você olha pela janela e não vê nada de anormal. Olha pro relógio e percebe que está uns quarenta minutos atrasado, mas é melhor isso que morrer. Sai de casa, pega seu ônibus e, nele, você encontra os dois drogados que te balearam no URRQVAENQESVADPELEPSPIL. Você leva um puta susto do cão, mas percebe que os dois não estão drogados, não estão num carro a oitenta por hora e não estão armados. Estão conversando sobre a reunião no Drogaditos Anônimos de onde saíram e de como Tupã ajudou eles a superarem as drogas e os ímpetos de saírem correndo com o carro acima do limite de velocidade em áreas residenciais atirando aleatoriamente pela janela com um revólver. Você chega no seu ponto, vai pro trabalho e a vida continua, sem mais nada de anormal.

Agora, vamos ver o que acontece no segundo, UOVSQASVE:

Você sabe que, se esquentar seu misto, a sanduicheira vai explodir e você vai morrer. Então você ignora ela, come o misto frio mesmo, e vai trabalhar. Nada de mais acontece durante o seu dia, até a hora de voltar pra casa. Você volta e encontra apenas cinzas, pois você tinha se esquecido do Pepe, o garoto peruano que te ajuda a cuidar da casa nos dias ímpares e que gosta muito de sanduíches de salame quentes, e que você tinha ensinado a usar a sanduicheira para quando ele ficasse com fome. Um bombeiro explica que uma sanduicheira explodiu e queimou a casa inteira. Você se sente péssimo, mas a vida continua.

Enfim, vamos parar a história do UOVSQASVE por aqui e explicar o que aconteceu nesses dois casos.

Basicamente, a realidade mudou simplesmente porque você teria conhecimento prévio das consequências dos seus atos.

No UOVSQVVSBASDC, só de saber que você ia levar um tiro ao sair mais cedo de casa, a “realidade” se adaptou à isso e mudou a vida dos dois drogados, meio que invalidando sua decisão de esquentar o sanduíche - e também consertando sua sanduicheira, fazendo com que ela não explodisse.

Enquanto isso, no UOVSQASVE, só de saber que a sanduicheira iria explodir, a “realidade” não apenas sumiu com os drogados, mas criou um garoto peruano que te ajuda com a limpeza da casa nos dias ímpares.

Resumindo, a realidade se adapta de acordo com o conhecimento que você possui das conseqüências dos seus atos.

E é assim que a história de ZE:VLR vai acontecendo - você vai jogando a história até chegar em um momento de decisão e vive as conseqüências da sua escolha até o fim (normalmente envolve a morte de alguém). Ao término desse cenário, o jogo te mostra o esquema das escolhas já jogados da história, e você volta para o último momento de decisão, para você poder fazer uma escolha diferente. Só que certas coisas estarão diferentes no universo dessa escolha diferente, coisas até que não tem a ver com a sua decisão - simplesmente porque você já conhece as conseqüências da sua decisão inicial.

Se você não entendeu até agora como isso funciona, vai jogar o jogo que é mais fácil.

Enfim, o que me impressionou nessa coisa toda foi a sensação da “realidade” saber o que eu sei e tentar se antecipar a mim, criando obstáculos e fatores novos para minha experiência.

Ou seja, é como se o jogo soubesse o que eu sei sobre ele, e mudasse de acordo com isso para eu ter uma experiência nova sempre.

Ok, antes de vocês acharem que ZE:VLR tem o sistema de AI mais hiperdesenvolvido da história, saibam que eu estou multiplicando o que acontece de verdade no jogo por um bilhão, além do que a história e a esquemática de escolhas dele é um “ambiente” altamente controlado, sem muuuuuuuita liberdade (você tem sempre duas ou três escolhas fixas, você não pode, por exemplo, escolher socar todo mundo na cara enquanto cantarola “Orinoco Flow” se essa não for uma opção disponibilizada pelo jogo), mas que tem umas horas que você fica “Caralho! Como assim, ela fez isso? Quando eu escolhi X, ela não fez isso! É só porque eu escolhi Y desta vez? Uádafãqui!”

Se bem que essa devia ser uma opção em qualquer jogo.

E, assim, chegamos no ponto que eu queria chegar: um jogo onde a história se adapta de acordo com o que você sabe dela.

Uma história de mistério que o assassino muda de acordo com as pistas que você encontra, ou ainda se é a segunda vez que você está jogando ele. Uma história de aventura onde o traidor (sempre tem um) muda de acordo com o caminho que você faz. Um líder de ginásio que muda dependendo do seu Pokémon inicial.

Já existem jogos assim, brincando com isso, mas o que eu realmente quero é um jogo que eu me sinta manipulado pela história, onde ele chega na minha cara e, com um sorrizinho cínico, chuta minhas expectativas no saco. E foi isso que ZE:VLR conseguiu.

Acho importante ressaltar que só quero isso no aspecto da história, ou, no máximo, em posicionamento de inimigos e itens. Que um Mario que cada vez que você morre surgem blocos invisíveis aleatórios mudando a fase por completo não é um game, mas um exercício masoquista.

Fechando a idéia toda: mais que quantidade de escolhas, acho que um aspecto de narrativa em games que devia ser trabalhado é a idéia de conseqüências condizentes E INESPERADAS, que se adaptam de acordo com o jogador. Sim, eu sei e já falei que é impossível prever e programar todas as variáveis possíveis das decisões dos jogadores, mas se limitar a quantidade de escolhas e focar em dar conseqüências mais impressionantes/surpreendentes/coerentes, acho que a experiência do jogo ganha mais que com excesso de liberdade de escolha.

É só não cair numa armadilha Shyamalanesca - mais importante que “surpresinha no final” é “história boa”.