quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Jessica Jones, uma super-heroína

Olá. Faz tempo que não escrevo aqui, não? É que o blog sobre games tem consumido todo meu tempo livre para escrever nos últimos tempos (tenho um blog sobre games, aliás, visitem-no).

Mas surgiu um assunto que eu realmente quero escrever sobre e que não tem a ver com games, por isso aqui estou. Antes de começar, porém, alguns avisos:

1 - SPOILER ALERT! Se você não viu Jessica Jones e não quer spoilers, não leia este texto ainda. Não pretendo pôr muitos spoilers, na verdade, mas vão ter alguns inevitavelmente. Sem contar que o que é spoiler para alguns não é nada de mais para outros, então prefiro deixar avisado que vai ter spoilers de qualquer jeito.

2 - Outras pessoas, provavelmente mais inteligentes e com mais autoridade do que eu, já devem ter discursado sobre o tema deste post em diversos outros momentos da história da humanidade. Mas eu quero dar a minha mijadinha intelectual aqui para marcar como meu o território referente ao assunto, então me deixem em paz para falar disto.

3 - Não li Alias, a série em quadrinhos que inspirou a série no Netflix, então é bem capaz de eu falar alguma bobagem sobre a personagem. Na real, nunca fui muito de ler HQs de super-heróis em geral, o que tira ainda mais credibilidade do que eu vou dissertar aqui. Mas sou um grande fã dos filmes e séries de super-heróis que andam saindo (mais as da Marvel, mas tenho muita curiosidade em ver o Flash).

4 - Este post não é uma indireta específica para ninguém em especial, só para a Thaísa do RH. Então, se você não é a Thaísa do RH e sentir que este post é sobre você, desculpa, não era a intenção te ofender, espero apenas que este post te ajude a refletir. Agora, se você é a Thaísa do RH, você está claramente errada e eu estou certo.

Ótimo, chega de avisos, vamos logo para o assunto:

O(s) tema(s) de Jessica Jones




Jessica Jones é muito bom. Muito mesmo. Espetacular. Não me considero um grande crítico de obras audiovisuais, mas senti que todos os atores mandaram muito bem, que os roteiros eram fantásticos, que a fotografia ficou foda e que praticamente tudo funcionou. Eu até tenho algumas pequenas críticas para pequenos detalhes da série, mas vou deixar elas fora deste texto que elas não vão acrescentar muito aqui.

De qualquer maneira: eu gostei pra cacete da série. Mais até que do Demolidor, virou a minha série de TV não animada favorita de super-heróis (ainda tenho um carinho nostálgico muito forte pela série animada do Batman). E eu sei que não fui o único a adorar a série, pois vi muita gente, tanto críticos quanto pessoas normais (vocês entenderam o que eu quis dizer com esta comparação) falando muito bem da série.

Mas eu vi um certo discursinho surgindo sobre Jessica Jones que me irritou profundamente:

“Jessica Jones não é uma série sobre super-heróis, é sobre relacionamento abusivos/abuso sexual.”

Muito bem.

Então.

Seguinte.

Antes que alguém queira gritar na minha cara, deixem-me esclarecer o que me irrita nessa frase.

Comecemos com a segunda parte da frase: relacionamentos abusivos/abuso sexual.

Sim, este é um dos, ou melhor, é O Principal Tema de Jessica Jones™. Não tem nem o que discutir, o comportamento do Kilgrave é praticamente um espelho de um parceiro abusivo, se colocando como um tipo de salvador da Jessica, e tratando todas as merdas que ele fez (e ainda faz) como se fossem um mimo, um agrado, para ela, sem perceber como ele está sendo intrusivo, violento e escroto. E, vendo o stress pós-traumático da Jessica, não tem como não perceber os paralelos com vítimas reais de abuso. Sem contar que eles tiveram a coragem de ir até o ponto mais crucial e horrível desse tipo de história, que é a reação das pessoas ao redor. Ninguém acreditava no que tinha acontecido com a Jessica e com a Hope, pelo menos não até ter acontecido com eles mesmos. Sério, se você não percebeu que este era O Principal Tema de Jessica Jones™, assista de novo prestando mais atenção.

E, só porque eu sinto que tenho que admitir isto, percebi que eu mesmo já fiz ou pensei em fazer algumas das escrotices do Kilgrave. Fiquei com um certo nojo de mim mesmo em alguns momentos da série, pra dizer a verdade.

Tipo o porão do meu apartamento, onde guardo todas as fotos da minha namorada. Espero que ela nunca descubra.

Mas enfim, não sou alguém com a capacidade ou a autoridade de aprofundar sobre algo tão complexo quanto O Principal Tema de Jessica Jones™ (apesar de que vou retomar o assunto mais pra frente).

O que eu quero dizer com tudo isto é que não é a parte sobre relacionamentos abusivos/abuso sexual que me irritou na citação acima.

O que me irritou foi a desconsideração pelos super-heróis.

Que super-poderes e heroísmo são, sim, temas de Jessica Jones.

Super-poderes para dar e vender


Qual foi a parte onde um cara pega uma serra circular Bosch e tenta serrar o próprio abdome e não acontece nada que você não percebeu que demonstrava a existência de super-poderes na história? Ou a moça que pula facilmente até o segundo andar de um prédio? Ou o cara que controla a mente dos outros só falando?

Sério, Jessica Jones fica alardeando a presença de super-poderes na série como se não houvesse amanhã. Acho até que tem mais super-poderes por página de roteiro em Jessica Jones que nos filmes do Capitão América, e num deles tem o Agente Smith Elrond Hugo Weaving com uma cabeça vermelha como se fosse uma caveira viva. (Nossa, é daí que vem o nome dele nos quadrinhos, o Caveira Vermelha! Que coisa.)

Além disso, é a super-força da Jessica que alimenta um dos principais questionamentos da personagem, sobre ela se tornar ou não a heroína que a Trish quer que ela seja (sim, tem toda a questão dela questionar os próprios valores morais, assim como o sentimento de culpa por ter matado a Reva, mas convenhamos: sem sua super-força, ela não ia ficar se cobrando tanto sobre se tornar uma heroína) (pelo menos na minha opinião).

E, é óbvio, os poderes do Kilgrave, que só fazem a história existir.

O que eu quero dizer é: Jessica Jones não apenas possui super-poderes, super-vilões e super-heroínas, como super-poderes fazem parte das motivações dos personagens e da estrutura da história. Falar que a série não é sobre super-heróis é uma afirmação tola, para dizer o mínimo.

– Mas, Vitor, – diz uma voz vinda do RH – a pessoa que fez tal afirmação só estava querendo fazer uma hipérbole com o objetivo de chamar a atenção para O Principal Tema de Jessica Jones™, que é algo importante de ser discutido em cultura pop e na sociedade como um todo!

Ok. Tudo bem. Se tem uma coisa que eu sei muito bem como funciona, é o uso de hipérbole na internet com o objetivo de chamar a atenção e manipular um discurso. E, de fato, O Principal Tema de Jessica Jones™ é infinitamente mais importante do que super-poderes, tanto culturalmente quanto socialmente falando.

Mas isso não muda o fato que essa hipérbole despreza o valor dos super-heróis, e eu acho que fazer isso só ajuda a piorar a discussão em torno d’O Principal Tema de Jessica Jones™.

O valor dos super-heróis


Comecemos admitindo o óbvio: super-heróis, ou pelo menos o conceito moderno de super-heróis na cultura pop (porque, se perguntar pra mim, personagens mitológicos como Hércules, Isis e Jesus são super-heróis também), nasceram como uma diversão para crianças. As histórias eram simples, coloridas e fantásticas, valores considerados até hoje exclusivamente infantis (por mais que não sejam, mas isto é assunto para outro dia), deixando esse estigma nas histórias de super-heróis como coisa de criança. Por isso que quando sai uma obra mais adulta ou com temas mais sérios envolvendo super-heróis, uma das primeiras reações de quem não conhece o assunto é dizer que nem parece ou que não é uma história de super-heróis.

Só que acontece o seguinte: super-heróis não são uma coisa só para crianças. Faz tempo. Ou vocês acham que a bilheteria dos filmes da Marvel consistem apenas de pais levando os filhos pro cinema? Claro que não. Super-heróis conquistaram diversas pessoas, das mais variadas idades e origens.

A questão é que super-heróis, na minha opinião, vão além de ser um tema ou um gênero de história: eles podem ser um instrumento diegético. Ou seja, super-heróis podem ser utilizados como um elemento do universo como outro qualquer para passar seu tema principal, sem necessariamente ser o foco central da narrativa.

Vou tentar dar um exemplo do que eu estou pensando com outra coisa que eu sinto que pode tanto ser um tema quanto um instrumento diegético (guardadas as devidas proporções): guerras.

O que você considera um filme de guerra? Um que foca nos soldados? Um que relata a sobrevivência dos civis envolvidos? Nós devíamos ensacar todos os filmes que envolvem alguma batalha de algum tipo no mesmo gênero também? Guerra nas Estrelas é tematicamente parecido com Nascido para Matar?

Não. Claro que não. Por mais que existam trocentas histórias sobre guerras, o foco varia muito. As mensagens que essas histórias buscam passar variam muito. Em muitas, a idéia é simplesmente narrar a superioridade do lado vencedor (pensem nas epopéias clássicas), em muitas outras o objetivo é mostrar a dor e o sofrimento dos sobreviventes. Histórias de guerra podem tanto focar no egoísmo e no lado negro dos seres humanos, assim como podem mostrar o lado bom da humanidade, onde alguns fazem o que podem para salvar a maior quantidade de pessoas possível.

Super-heróis, para mim, podem ser o mesmo (novamente: guardadas as devidas proporções).

Posso criar uma história onde o foco é nesse indivíduo especial que obtém super-poderes e como seus super-poderes o deixam super-poderoso? Posso. Mas eu também posso criar uma história que trabalha os problemas do vício, como isso afeta a vida de uma pessoa, mesmo que ela tenha super-poderes. Uma história sobre preconceito e racismo, onde os indivíduos com super-poderes são excluídos da sociedade. Uma história sobre encarar a própria morte, ainda mais quando se tem super-poderes e você é um ícone para muitos. Ou mesmo uma história de assalto com elementos humorísticos onde o assaltante possui super-poderes.

Se depois de ver esta página, que é a melhor história já escrita sobre o Super-Homem,
você ainda não ver o potencial diegético de super-poderes, vai enfiar a cara na privada.

E, é claro, uma história sobre relacionamentos abusivos e abuso sexual, onde os super-poderes do estuprador funcionam bem como metáfora para os poderes que a sociedade dá para aqueles que estão em posição de superioridade e cometem abusos.

Deu pra entender porque Jessica Jones é, sim, uma história de super-herói, ou melhor, uma história de super-heroína? E que isso não diminui, em absoluto, a qualidade da série?

Vou presumir que vocês responderam “sim”, até para eu poder continuar o texto e trabalhar a outra parte da questão toda: a importância de uma história de super-heroína abordar o tema de abuso sexual e relacionamentos abusivos.

Apresentando O Principal Tema de Jessica Jones™ para quem mais precisa entendê-lo


Vou fazer a próxima afirmação sem ir atrás de dados estatísticos que a comprovem, mas imagino que não precisarei deles para estar certo: o principal público consumidor das histórias de super-heróis, historicamente falando, sempre foi masculino.

Não estou falando que não existiam consumidoras do sexo feminino, mas sim que a maioria era masculina.

Isso, infelizmente, gerou uma conseqüência um tanto desagradável: muitas histórias de super-heróis sempre tiveram um forte cunho sexista. Na verdade, agora que estou pensando, não sei dizer se o sexismo existente na maioria das histórias de super-heróis foi conseqüência do principal público consumidor ser homem ou se ele foi usado nas histórias justamente para atrair o público masculino. Provavelmente foi uma mistura das duas coisas, com uma pitada de “a sociedade em que vivemos é sexista”.

Acho que podemos acrescentar uma dose de “burrice crônica”
e “completa falta de noção” na conta.

A questão é: histórias de super-heróis não são aquilo que eu chamaria de igualitárias na questão de gênero (nem de raça e nem de orientação sexual, mas essa deixemos essas discussões para outro dia).

A situação está melhorando nos últimos anos, mas ainda têm muitos problemas para serem resolvidos, tanto do lado da produção quanto do lado dos consumidores.

Com isso em mente, posso voltar a falar de Jessica Jones.

Para começo de conversa, a personagem principal de Jessica Jones é uma mulher (dã). Mais do que isto: é uma personagem complexa, com forças, fraquezas, virtudes e vícios. Pode parecer estranho, mas ter uma mulher retratada como um ser humano complexo já é um feito por si só. E não é só ela, temos também sua irmã adotiva/melhor amiga e sua advogada, outras personagens femininas com uma profundidade maior que o pires rosa usado normalmente para personagens assim.

Em seguida, temos o fato que todas essas mulheres não são desnecessariamente sexualizadas só para prender a atenção da audiência masculina na base da ereção. Se alguém foi sexualizado na série, foi o Luke Cage (aaaaabs), e nem foi muito exagerado. Só um pouquinho.

Para finalizar, temos O Principal Tema de Jessica Jones™.

Novamente, não me sinto com a capacidade ou a autoridade para aprofundar o assunto, mas só quero lembrar que o modo como a nossa “civilização” trata o assunto é terrivelmente escrota e sexista: temos a horrível tendência a duvidar e culpar a vítima (tipicamente uma mulher) e a justificar e atenuar as motivações do criminoso (tipicamente um homem). Mas, como já falei antes, Jessica Jones soube trabalhar bem o assunto e escancarar a canalhice do abusador (Kilgrave), a dor e o sofrimento das vítimas (Jessica, Hope e mesmo o Malcolm e o Simpson, entre outros) e a atitude escrota das pessoas em volta (Jeri, Luke, Clemons, etc).

Resumindo: Jessica Jones é uma história que soube representar mulheres como seres humanos e não como objetos e ainda trabalhou de maneira inteligente e realista (mesmo com super-poderes) um assunto que possui um forte viés sexista na sociedade, passando uma mensagem feminista importantíssima para as pessoas pensarem e analisarem sobre si mesmas.

E isso tudo é ainda mais importante porque Jessica Jones é uma história de super-heroína.

Porque ela representa uma evolução das histórias de super-heróis.

Porque ela é outro passo importante na questão de representatividade nas histórias de super-heróis.

Porque ela atinge um público que nunca teve muito acesso a obras desse tipo.

Porque ela amplia e apresenta para mais pessoas o potencial desse instrumento diegético que são os super-heróis.

Tirar isso de Jessica Jones, tirar da série a classificação de “história de super-herói” não a faz melhor, apenas reduz a importância histórica dela dentro da evolução das histórias de super-herói.

Apenas a diminui.

Conclusão


Super-heróis, super-vilões e super-poderes não são uma coisa inerentemente incultas ou pobres (narrativamente falando), eles são um instrumento diegético que, nas mãos certas, funcionam muito bem para criar analogias e metáforas com o mundo real e, assim, refletirmos sobre ele.

Infelizmente, esse instrumento foi, por muito tempo, usado para criar narrativas com um forte viés sexista e focadas num público-alvo masculino.

Mas a situação está melhorando. Novas histórias estão surgindo e tendo um tom mais inclusivo e igualitário.

Histórias como a de Jessica Jones.

Não sei se esta série vai ser realmente um grande marco da evolução da representatividade feminina em histórias de super-herói, ou sequer se ela realmente vai fazer uma grande diferença cultural em como lidamos com O Principal Tema de Jessica Jones™.

Mas uma coisa eu sei: Jessica Jones é uma história de super-heroína feminista que aborda uma questão social séria.

Tirar qualquer parte desta afirmação serve apenas para tirar mérito da série ou demonstrar sua ignorância.

E me irritar. Vocês não querem me ver irritado.

E aí? Já estão com medo?